terça-feira, 20 de agosto de 2013

A GEMINHA



                      
                       A GEMINHA

(Seria bom ler antes o texto “As Geminhas”.)

Saí de lá aos prantos e, sem dizer palavras, acompanhei seu Inacinho mudo, indo à frente pelo exíguo caminho rasgado no matagal denso até a porteira que rangia dolorosa, ao ser empurrada para dar passagem. Durante o percurso ele sacudia a cabeça, negativamente. Não tinha coragem de me recriminar porque com certeza, não estranhava minha reação. Sem comentários, deixou-me no ponto do ônibus onde havia um estacionado com o motor ligado, já pronto para partir. Segui chorando todo o tempo até a Estação Rodoviária. Ao descer do veículo resolvi atravessar para Francisco Bicalho e ir a pé pela avenida deserta de transeuntes, mas com intenso trânsito de veículos para o centro da cidade. Pensei usar um táxi. Agora, ali sozinha e sem plateia dei vazão a ira, a culpa, a dor e ao pranto incontido. Sentia-me responsável. Lembrava-me de Luzia, a criança minha aluna pedindo ajuda e dizendo que se eu não fizesse nada, elas morreriam. Pensava em Luzia. Ela acreditava que eu seria a última esperança. E agora?
Meu choro me cegava e era convulsivo quando senti alguém me segurar pelos ombros, interrompendo-me os passos:
- Que houve menina? Brigou com o namorado?
Quando ergui a cabeça, ele sentiu que a situação era trágica e, imediatamente, corrigiu:
- Quem morreu? Desculpe. Olhei, por acaso, para a calçada e vi você chorando. Segui em frente, mas impressionado retornei. Voltei mais duas vezes e achei que devia fazer alguma coisa. Posso ajudar?
- Não. Obrigada. Ninguém pode mais porque ela morreu.
- Ela quem?
- A Geminha!
- Que Geminha? O que é geminha? É bicho?
Olhei-o pronta para acabar com a “gracinha” enquanto ele  segurando o braço me conduzia até seu carro, dizendo:
- Vamos lá, conta. Ninguém chora desse jeito à toa.
Sentada ao seu lado contei-lhe o drama e fui surpreendida pela sua reação.
- Bem... Eu tinha alguns compromissos que podem esperar. Quer voltar lá? Pelo que você está dizendo a outra criança é condenada ao mesmo fim. A gente volta lá e leva a menina para ser internada no hospital. Quer voltar?
Eu estava espantada! Um homem que eu nunca vi na vida se dispunha a ir do centro da cidade até Santa Cruz buscar a Geminha porque tinha se comovido com meu choro?
- Olha, não é ali no centro de Santa Cruz, não. É lá pra dentro de uma fazenda. É no meio do mato.
- Escuta menina, agora eu vou lá seja onde for. Resolvi ajudar. Enxuga esse rosto e me diz onde fica o hospital mais próximo do lugar.
- É o Hospital Pedro II.
Então, vamos buscar a Geminha sobrevivente e para de chorar.
E fomos.
- Qual seu nome?
- Zelia. E o seu?
- Boaventura.
Sorri com amargura. Pensei que fosse piada. Naquele momento o que eu mais queria era que tudo desse certo, porém não era piada. Era seu sobrenome, de verdade.
- Pode deixar o carro aqui na porteira. Agora se apronte pra andar. Vai ficar com as calças cheias de carrapichos.
- Tudo bem. Será que essa mãe deixa você levar a criança?
- Ela me conhece. Se eu explicar e pedir. Tenho certeza que ela deixa.
Enfim, chegamos. Para o horror de seu Boaventura meu pranto se justificava. Ele não entendia como há oitenta quilômetros de Copacabana pudesse deparar com uma cena de miséria naquela dimensão.
- Vim buscar a Neném pra levar pra um hospital, posso?
Sem falar a mãe se abaixou até o chão e retirou do caixote de tábuas a criança, entregando-me. Ninguém chorou, nem interferiu.
Peguei o bebê e mostrando a ele disse:
- Ela tem dois anos e é assim, linda.
- Bonita mesmo! Tem pestanas enormes e olhos lindos!Ela tem dois anos? Parece um “bebê de colo”! Vamos salvá-la!
E saímos rápido, enquanto Seu Boaventura disfarçadamente enxugava os olhos.
O diretor do hospital era o Doutor Ciraldo. Ele me conhecia bem. Sabia que eu era “a rainha da confusão” dizia sempre, zombando de mim:
- Quando é menina, que você vai me trazer solução? Você só me traz problemas... E ria, passando ternamente a mão na minha cabeça. Era um homem bom. Um médico competente, generoso e querido pela população.
O hospital ocupava um prédio contemporâneo a D.Pedro II e estava caindo aos pedaços. Sem recursos e, muitas vezes usando os seus próprios, Dr. Ciraldo fazia milagres para atender os pacientes. Assim que me viu franziu o cenho:
- Lá vem bomba! Não é chorona?
Seu Boaventura cochichou no meu ouvido:
- Ah! É assim que você pega os incautos...
- Quem é ela? Não tem idade pra ser aluna de sua escola! E riu.
- Não. Não é. Contei-lhe rápido que era gêmea e que a irmã havia morrido. Disse-lhe a idade. Tem dois anos. Pesa quatro quilos e setecentos e cinquenta gramas. O mesmo peso da irmã. Ele não se escandalizou. Entramos. Ele pediu a presença de um pediatra e saiu. Após o exame fui informada do diagnóstico: FOME. Extrema carência nutricional. Precisaria de soro, alguns medicamentos e alimentação especial. Tanta desnutrição poderia causar danos, talvez irreversíveis, porém tinha chances de sobreviver.
Dr. Ciraldo me chamou e disse não ter como interná-la. Não havia leito disponível e sua frágil saúde exigia isolamento. Não poderia ser exposta a contágio qualquer.
- Sinto muito, professora. Já que tem carona, vá até Campo Grande. Quem sabe lá no Rocha Faria consiga interná-la?
         - Meu Deus! Quando a gente está distante destas situações não avalia o tamanho da tragédia. (Disse meu motorista de plantão horrorizado). Tudo bem. Eu lhe falei que ia ajudar e vou. “Bora” pra Campo Grande!
O Hospital Rocha Faria era um formigueiro.
O pediatra que atendeu fez uma receita preciosa com todos os cuidados e alimentação e remédios que deveriam ser ministrados pelos pais e ao entregá-la me disse:
- Não há vaga. Não tenho como interná-la. Se for alimentada como as recomendações indicam, com cuidados higiênicos e em ambiente saudável, ela escapa. Não posso desocupar um leito de quem tem urgência e ameaça iminente de morte para colocá-la. Sei que é cruel. Estou ficando mal, eu já não durmo direito. Tenho de escolher quem tem mais necessidade. Quem vai viver. Quem deixo morrer. Parece que estou num campo de concentração judeu. É horrível demais! Se não é justo com eles, imagina comigo. Acho que cheguei ao meu limite. Neste caso, se ela for alimentada direito está salva. Não posso dar alta a quem tem meningite, pneumonia... Sei que é desumano, que fazer? É desesperador!
Não há vaga. Não há condições. Não tenho culpa. Entende? Só tenho casos extremamente graves internados. O hospital está superlotado. Pior é que ninguém culpa prefeito, governador, presidente. Todos responsabilizam o médico! Nós somos ofendidos e ameaçados! Quero ir embora. Quero deixar isto aqui. Não dá mais pra aguentar!
Insisti:
- Sabe doutor, é que sua irmã gêmea já morreu... Seus pais são miseráveis... São analfabetos. Nem poderiam seguir as ordens desta receita.
      - Entendo sua angústia. Não fique brava comigo. Esses desgraçados fazem política em benefício próprio. Tenta lá no Hospital Jesus. Quem sabe, lá...
Fomos. Ouvimos a mesma e trágica resposta:
- O hospital está lotado. Vocês vem de longe porque não tentaram por lá?
- Foram eles que nos encaminharam. Também não tem vaga.
Ele sacudiu a cabeça nervoso.
- Pensa que é fácil recusar paciente? Acha que eu não quero atender? Vocês me olham como se a culpa fosse minha! Eu já tenho pacientes no chão! Não dá pra inventar espaço, vaga!
Agora, ele gritava desesperado.
Sabíamos que não mentia e seu Boaventura falou:
- Calma, Doutor. É que a gente não sabe mais a quem recorrer. É duro pra todo mundo. É triste demais. Fica calmo.  Seus pacientes precisam do senhor com saúde, meu amigo. Nós vamos dar um jeito. E saímos.
- Nós vamos dar um jeito? Que jeito?
- Você tentou, não foi? Não deu. Leva a receita pra mãe e explica tudo direitinho...
- Escuta. Você deve estar brincando... A receita tem páginas e páginas... Nem com toda boa vontade... Naquela casa não há quem possa segui-la. Coitados! Mesmo com toda explicação. Pra começar - não sabem ler as horas - nem precisam de relógio. Orientam-se pelo sol. Como vão ministrar alimentos e remédio na hora certa? Tem mais – ela precisa de soro!
 Não tinham nem talheres. Comprei garfos e facas e colheres de sopa e pratos porque trago mantimentos que compro também com a ajuda de amigos generosos. Comiam numa única lata de goiabada velha. Acredita? Primeiro os que iam pra roça. Os menores eram os últimos. Agora são dez filhos. É uma tragédia. Dormem no chão sobre pedaços de papelão. A geminha vive dentro de um caixote de madeira.
- Meu Deus! Que é que vamos fazer?
- Olha, volta lá no Doutor Ciraldo.
- Mas ele já disse, professora, que não pode!
- Volta lá! Volta lá!
Quando chegamos o velho Doutor estava atravessando o pátio. Ao ouvir meu choro desesperado, gritou para um funcionário:
- Pega lá no almoxarifado uma cama qualquer. Pega a menos estragada.
- Mas tá tudo quebrado, enferrujado, doutor!
Eu sei. É um risco, mas que fazer? Escolhe uma melhorzinha.  Ajeita. Limpa. Desinfeta ela. Pega umas toalhas pra fazer um colchãozinho. Tenho que internar essa menina, senão a professora vai morrer de chorar e eu não quero suas crianças tristes e me culpando. Olhando pra mim e sorrindo pegou a geminha do meu colo. Passando carinhosamente a mão sobre seus cabelos, ajeitou-a no colo e rosnou:
- Agora some. Se me aparecer com outra bomba desta... Eu interno é você!
Sumi mesmo.
Uma enfermeira me aconselhou a desaparecer, segredando:
- Quando ela receber alta dou um jeito de avisar. Diga a mãe dela que não venha aqui. Da forma que este hospital está superlotado, se aparecer alguém e ela estiver melhorzinha será devolvida imediatamente para continuar a tratar em casa. Sei que não há condições. Vi seu desespero. Então, não venha também.
Segui seu conselho. Avisei a família o que aconteceria e pedi que aguardassem. Eles confiavam em mim.
A enfermeira me dava notícias e me comunicou que o pediatra tinha lhe dito que se fosse casado ia tentar adotar a Geminha. Ela o adorava. Estava começando a falar e o saudava com a maior alegria.
Um dia recebi um recado do Dr.Ciraldo:
- Professora! Se não vier buscar sua bombinha... Vou mandar deixá-la na porta da Escola!
Quando a devolvi à família foi uma surpresa. Recuperada era mais linda ainda. Crescera assustadoramente e engordara num tempo exíguo. Reconhecera todos. E nos braços da mãe sorria feliz!
Quanto ao Senhor Boaventura... Desapareceu.
É por isso que acredito em Anjos!
Zelia da Costa

Nenhum comentário:

Postar um comentário