segunda-feira, 29 de outubro de 2018


                                                     ADAMAR

      Teríamos que aguardar cerca de quarenta minutos pelo embarque.
Diante desta informação nos acomodamos frente à pista de pouso, ainda no interior do aeroporto.
      Nuvens espessas toldavam o céu prenunciando uma viagem sob o risco de temporal.
     Sentada, observava os passageiros. Alguns, nitidamente ansiosos, outros mergulhados na leitura. Havia ainda, aqueles que não conseguem viver sem a comunicação de um celular.
    O movimento do constante "vai e vem" dava a sensação de integrar um ativo formigueiro.
    Malas eram carregadas por alguns com evidente sacrifício. Enquanto outros, as traziam como brinquedos a patinar ,leves e sem alguma intenção, giravam e  desviavam, ora acelerando, ora freando cumprindo  um destino de indecisos rumos. Foi quando eu a vi:
- jovem, de aparência simples, sem grandes atrativos – olhos, boca, corpo tudo bastante comum. Nada de especial relevância.
    Ela se aproximou do balcão e trêmula perguntou ao funcionário da empresa aérea pelo “seu voo”. Sem olhar, o jovem lhe respondeu que ia demorar ainda e bastante:
- Pode sentar ali e aguardar, Ainda vai demorar!
    Ela repetiu a pergunta e ele impaciente, repetiu a frase, agora, olhando - a com certa irritação.
   Súbito, sua atenção se voltou para mim. Vi que estava nervosa. Suas mãos  tremiam com célere frequência.
   Nada lhe disse, porém a olhei com evidente simpatia, penalizada com sua aflição.
  Segurando o celular com as mãos crispadas começou a fazer ligações.
  - Minha família está nervosa porque estou viajando sozinha. Vou noivar!(Quase gritara).
   Sorri. Um sorriso complacente.
 - Parabéns!(Ela pareceu não ouvir).
  Novamente, acionou o celular. A ligação não se completara!
  Diante de mim, de pé, aflita insistiu. 
   - Agora parece que deu certo:
   - Já estou no aeropoooorto! Podem ficar tranquilos!(Ela gritava) Daqui a um pouco mais, o avião vai sair!
  Desligou, sem ouvir resposta.
  Sorria, um sorriso tenso. Seus olhos brilhavam com as lágrimas que teimavam transbordar!
  - Eles estão me perguntando se eu trouxe os remédios.
  Apontando para uma valise, que parecia  carregada, foi me informando:
  - Está cheia de remédios! Sem eles, minha família não me deixaria viajar! 
  E sem intervalo, no mesmo tom público declarou:
   - Fui abusada pelo meu avô, dos oito aos quatorze anos! Minha família tem raiva de mim!
    Surpresa, mas sem deixar esta leitura tomar minha expressão, mantive os mesmos gestos e atenção!
 - Tenho dezenove anos e vou casar! Meu noivo me adora! Faz tudo pra me agradar. Ele está preocupado comigo. Ele fica me perguntando se estou bem, se comi, se estou calma... Bom, né? Ter alguém que se preocupa com a gente... Ah!... Ele me ama mesmo!
   E sorria, um sorriso sem alvo e sem verdade. Ria para si mesma e falava. Falava alto. Sem reservas! Às vezes, me olhava como se estivéssemos conversando. Mas, não estávamos!
    - Meu noivo tem cinquenta anos e eu dezenove.
     (Não parecia tão jovem.)
     E mostrando-me as mãos:                                       
    - Olha! Eu estou tremendo! 
    - Não há razão. A viagem será perfeita. Fique calma. Está tudo bem.       (Procurei acalmá-la)
     Ela fez uma ligação que não se efetivou. Aí, tornou ao balcão e, antes que executasse a abordagem da indagação, o funcionário lhe apontou uma cadeira:
    - Eu lhe disse pra sentar que o voo vai demorar!
     Sem obedecer à ordem, ela disparou uma saraivada de frases, absurdamente  fora do contexto:
    - Minha família tem raiva de mim! (Agora ela tremia inteira).
    - Fique tranquila... Nosso avião já chega.(Insisti)
    - Meu vestido de noiva é lindo! Já experimentei... Ficou lindo!
       As pessoas falam porque tenho dezenove anos e ele cinquenta!Ele me adora!
    - Eu fui garota de programa!
    - Eu tenho dezenove anos. O pessoal fala que ele é velho pra mim!
    - Mesmo quando virei crente... Eu louvava e fazia programa...
    - As psicólogas mandam eu tomar esses remédios pra eu viajar. 
 E apontava pra valise...
    - Tá vendo lá... Aquela mala? Está cheia de remédios!
E de volta ao celular, que não lhe atendia as intenções, dizia que a família pedia que não deixasse de tomar os remédios.
    - Acalme-se está tudo bem.
Ouvi que minha preocupação se externava. Afinal, ela era passageira no mesmo avião.
 - Qual seu nome?
 - Adamar!(Foi a primeira vez que ouvi esse nome).
    Eu a olhava com visível piedade. Não sabia localizar a mentira, mas tinha a certeza de que a tragédia – o estupro cometido pelo avô – era sua única, triste, dolorosa e desgraçada verdade!
Zelia da Costa/NM/MT/29/10/2018/
                 19:42


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