ERA UMA VEZ... UM HERÓI!
Era um dia qualquer, mas ele se tornara especial. Meu avô nunca permitiu que os dias se fizessem comuns. Ele nos visitava sempre e se tornou inesquecível personagem que me acompanha desde minha infância. Era um velho alegre, de humor irradiante no seu gestual, exagerado pela doçura de sua sensibilidade rara e pela gargalhada cujo contágio não obedecia limites nem na forma, nem no efeito. Assim, conversar com ele, ouvir suas histórias... Era ingressar num universo de mágica e incomum experiência.
As crianças da minha rua disputavam "lugar" quando ele chegava. Havia uma competição para "subir"sobre seus sapatos e, assim, fazer o percurso até minha residência, usando os pés de vovô para conduzir nossos passos rumo ao meu lar. Logicamente, este privilégio era meu e a disputa era vencida pela frase:
- Calma criançada...Se brigarem, vovô não vai contar aquela história do gigante da floresta...
- Que gigante?
- O gigante que lutou com o dragão?
E enquanto caminhava, aquele velho sorridente e carinhoso ia apaziguando os ânimos, alterados pelo ciúme, na disputa de sempre! Mesmo exausto, atendia aos pedidos ansiosos:
-Vovô! Conta uma história? Conta, antes de entrar!
- Vovô! Conta aquela do "rio das águas mágicas!"...
- Vovô! Conta a do "peixe que falava"!...
E, assim, aquele velho que usava gravata em lugar de cinto, que nos fazia descobrir a alma das personagens, um dia me surpreendeu narrando uma história verídica, vivida num cenário de horror real e tendo como personagens ele, vovó e seus filhos e entre eles meu pai!
Pela primeira vez fui apresentada a uma história de terror! Naquele dia, vovô me chamou e disse:
- Vovô sempre conta "História de Mentirinha", mas eu queria contar pra você uma "História de Verdade"... Quer ouvir?
- Quero sim, eu quero...
Não era comum aquela súbita expressão de tristeza.
- Vovô, que história é essa?
- É uma história que aconteceu quando seu pai era quase um neném e seus tios eram crianças... Houve, há muitos anos atrás, uma doença que perversa, percorreu o mundo dizimando multidões. Foi a "Gripe Espanhola"!
Eu ainda estava sorridente e curiosa, quando vi aquela lágrima correr no seu velho rosto, agora, amargamente decifrado.
Queria pedir pra ele não continuar, mas a curiosidade não permitiu e me ouvi dizer:
- Que história foi essa?
- A Gripe Espanhola foi como uma "peste" e como toda peste... perversa! Era uma febre alta que matava sem piedade! Perdi muita gente querida! As pessoas morriam sem atendimento!
- Aí, o Serviço de Saúde Pública anunciou que passaria pelas ruas, uma grande carroça "montada" para locomoção dos enfermos até o hospital! Nós morávamos em Vila Isabel, mas não confiei nas boas intenções públicas - sua avó estava contaminada!
- Apavorado, eu escondi sua avó no"forro" da nossa casa e pedi às crianças que não contassem pra ninguém "nosso segredo", porque senão levariam a mamãe deles embora e eu queria tratar da saúde da vovó em casa, escondido!
Agora, seus olhos deixaram escorrer a lágrima. Uma lágrima, dolorosamente furtiva e ele continuou:
- Cuidei dela, secretamente...Naquele lugar escuro e sombrio... E ela sobreviveu!
- Soube que muitas das carroças condutoras de pacientes, já deixavam os doentes no cemitério, aguardando o sinal definitivo de partida!
Vovô, agora sorridente, falava comovido:
- Ela sobreviveu e está aí toda bela!
Demos um grande abraço! Um perene e afetuoso abraço...
Um abraço digno de um Vencedor!
Assim, conheci "a peste" - a primeira "pandemia"- de que ouvi falar!
Minha avó faleceu bem idosa e, muitos anos, depois do meu herói!.
Zelia da Costa/ Nova Mutum /MT/18:51