segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

EM TEMPO

                             EM TEMPO

Qual uma sombra retida no fundo de imenso vão

Assim, se perdem palavras que escapam da intenção

Como gemas preciosas, presas 

Entre  estranhos matizes e ocultas raízes

Perdidos tons!

Aquele que se atrever tocá-las e extrair imagens 

- Mensagens de longínquos sons -

Talvez, decifre a passagem, cravada na paisagem

De um inverso mundo bom! 

Zelia da Costa /NM/MT/18/01/2021/19:30

 

  

ALÔ!? POSSO FALAR COM DEUS?

            ALÔ!? POSSO FALAR COM DEUS?

          Não sei em que tempo comecei a interrogar Deus, mas foi cedo. Percebi que os adultos O temiam e costumavam citá-lO como arma a seu dispor. Era comum os adultos ameaçarem:

          - Se você não for boazinha...Deus vai castigar! 

           E o que era ser "boazinha"? 

          - Era não "responder aos mais velhos"? Guardar os brinquedos no lugar? Não mentir?

          Como não mentir se todos diziam para eu não me "embrenhar no mato porque lá era cheio de bichos"... Mas se era, exatamente por isso, que eu me "embrenhava"...

          Bem, comecei a querer saber afinal, quem era esse tal de "Deus" que castigava quem respondesse aos mais velhos ou desobedecia às ordens "chatas" ou mentia...

         Nossa! Eu mentia! E como! Não tinha jeito!                   Minha mãe até relevava, às vezes, porém eu adorava subir nas árvores, jogar bola com os meninos, brincar de pique, pular corda, apostar corrida, brincar de "bandido e mocinho", "pular carniça", seguir trilha de rios... Fazer cerol para pipa! Não eram brincadeiras apropriadas para uma menininha! Aí, eu mentia para explicar a roupa manchada, o vestido rasgado, o arranhão no braço, o corte no calcanhar, o roxo no joelho,etc.

          Para desenvolver minha concentração, quer dizer, me fazer "sossegar o facho", uma expressão que guarda o significado de "ficar um tempo quieta", minha mãe me ensinou a ler.Aconteceu quando ela descobriu estar gravemente doente.

           Agora, ler e escrever para mim eram as chaves da descoberta de um novo universo. E eu gostava...O primeiro livro que ganhei o inesquecível "PEDRITO NO REINO DA FANTASIA"  tinha um boneco colorido e lindo, de papelão, que movia braços e pernas e trocava a roupa ao se virar cada página, tornando o livro um brinquedo encantado.Guardei-o durante anos até que desapareceu, o que me deixa triste até hoje. Presente de minha querida mãe!

          Minha rua era cheia de crianças. Não era longa e a proximidade das residências tornaram a vizinhança uma grande família! As mães faziam petiscos e trocavam receitas e mudas de plantas. Conversavam muito, levavam os filhos à escola.As crianças eram irmanadas num tempo sem televisão, em que o rádio atraía ouvintes pelas novelas e programas de auditório de César de Alencar, Manoel Barcelos e humorísticos como os "caipiras" comandados por "Jararaca e Ratinho" e mais tarde o "Balança Mas Não Cai"! Ari Barroso comandava o seu "Programa de Calouros"! Para as crianças e adolescentes "As Aventuras de Tarzã"!Ah! Havia um programa muito sério comandado por homem "grave" - Renato Murce!

         Meu avô não perdia a "sagrada Hora do Brasil" que "dava conta aos brasileiros dos caminhos que o governo tomava" e minha avó era assídua ouvinte do programa religioso  "Ave Maria"de Júlio Louzada!

         Bem, eu era fiel ouvinte das "Aventuras de Tarzã",meu herói incontestável e adorado também no cinema com sua vida livre entre animais, em meio a densa floresta africana. Vê-lo mergulhar, nadar, saltar entre as árvores... Afagar leões! Montar em elefantes! Conversar com a macaca Chita... Tornava-me parte integrante da aventura!Sim, porque criança, não brinca de "faz de conta", é tudo"à vera". Entendeu? 

       - Não?

       Quero dizer que para mim a "fantasia" era "de verdade"!Nada era de "mentirinha"! Tarzan era meu herói no rádio e no cinema e na vida real!Falar e ser entendido pelos animais que ele protegia com a própria vida...Passou a ser, por escolha, o meu destino! Até hoje tenho"diálogos" inacreditáveis! Abraço árvores e sinto a energia que as florestas emanam.Pássaros, insetos e feras guardam rara sintonia pra quem lhes empresta a atenção do momento que se faz sagrado.Não há mistério, apenas um sentimento que irmana e, às vezes, pede perdão!

         Súbito, minha mãe descobriu estar muito doente.Preocupada e para me manter mais próxima decidiu me ensinar a ler e escrever.Agora, aos seis anos, um novo mundo se descortinava. Era bom.Era muito bom. Ríamos das palavras novas que eu aprendia. De repente, ela começou a ler um livro grosso e pesado - um tal de "dicionário"!Perguntei a razão. Respondeu-me com um sorriso suave:

      - Mamãe não vai ter tempo de conhecer muita coisa e aqui eu vou explorando um mundo novo...

        Eu também quis um dicionário e meu pai comprou. Era um livro de segredos, disse ele, aguçando minha curiosidade.

      Agora, eu deitava ao lado de mamãe e ríamos muito das palavras novas e estranhas que íamos descobrindo... 

      Por um tempo, abandonei minhas aventuras externas...Sentia que algo, que não sabia explicar, estava para ocorrer...

          E Deus? É mesmo. Já ía me esquecendo...

Aliás, é muito comum a gente se esquecer de Deus! 

 Zelia daCosta/NM/MT/18/01/2021

domingo, 17 de janeiro de 2021

UM PRESENTE INIMIGO

 

             UM PRESENTE INIMIGO 


Quem se faz alheio a dor que se expande

Como estranho ator de um texto vago

Como em perdida cena desconexa

De uma indefinida peça fora do palco...

 

Aquele que usa a dor vizinha

Tal um troféu amaldiçoado

Há de chorar pelo caminho

De um mortal signo, por si, traçado 

 

Cuida, pra que o destino vingativo

Que gera toda sorte madrasta

Não o torne protagonista

De um castigo servido em taça

Em que o veneno tomado a esmo

O faça modelo de total desgraça!

 Zelia da Costa/17/01/2021/11:18

 




quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

                           ERA UMA VEZ... UM HERÓI!

                Era um dia qualquer, mas ele se tornara especial. Meu avô nunca permitiu que os dias se fizessem comuns. Ele nos visitava sempre e se tornou inesquecível personagem que me acompanha desde minha infância. Era um velho alegre, de humor irradiante no seu gestual, exagerado pela doçura de sua sensibilidade rara e pela gargalhada cujo contágio não obedecia limites nem na forma, nem no efeito. Assim, conversar com ele, ouvir suas histórias... Era ingressar num universo de mágica e incomum experiência.

               As crianças da minha rua disputavam "lugar" quando ele chegava. Havia uma competição para "subir"sobre seus sapatos e, assim, fazer o percurso até minha residência, usando os pés de vovô para conduzir nossos passos rumo ao meu lar. Logicamente, este privilégio era meu e a disputa era vencida pela frase:

             - Calma criançada...Se brigarem, vovô não vai contar aquela história do gigante da floresta...

             - Que gigante?

             - O gigante que lutou com o dragão?

              E enquanto caminhava, aquele velho sorridente e carinhoso ia apaziguando os ânimos, alterados pelo ciúme, na disputa de sempre! Mesmo exausto, atendia aos pedidos ansiosos:

               -Vovô! Conta uma história? Conta, antes de entrar!

               - Vovô! Conta aquela do "rio das águas mágicas!"...

               - Vovô! Conta a do "peixe que falava"!...

              E, assim, aquele velho que usava gravata em lugar de cinto, que nos fazia descobrir a alma das personagens, um dia me surpreendeu narrando uma história verídica, vivida num cenário de horror real e tendo como personagens ele, vovó e seus filhos e entre eles meu pai!

             Pela primeira vez fui apresentada a uma história de terror! Naquele dia, vovô me chamou e disse:

             - Vovô sempre conta "História de Mentirinha", mas eu queria contar pra você uma "História de Verdade"... Quer ouvir?

           - Quero sim, eu quero...

           Não era comum aquela súbita expressão de tristeza.

           - Vovô, que história é essa?

           - É uma história que aconteceu quando seu pai era quase um neném e seus tios eram crianças... Houve, há muitos anos atrás, uma doença que perversa, percorreu o mundo dizimando multidões. Foi a "Gripe Espanhola"!

           Eu ainda estava sorridente e curiosa, quando vi aquela lágrima correr no seu velho rosto, agora, amargamente decifrado.

          Queria pedir pra ele não continuar, mas a curiosidade não permitiu e me ouvi dizer:

          - Que história foi essa?

           - A Gripe Espanhola foi como uma "peste" e como toda peste... perversa! Era uma febre alta que matava sem piedade! Perdi muita gente querida! As pessoas morriam sem atendimento!

            - Aí, o Serviço de Saúde Pública anunciou que passaria pelas ruas, uma grande carroça "montada" para locomoção dos enfermos até o hospital! Nós morávamos em Vila Isabel, mas não confiei nas boas intenções públicas - sua avó estava contaminada!

            - Apavorado, eu escondi sua avó no"forro" da nossa casa e pedi às crianças que não contassem pra ninguém "nosso segredo", porque senão levariam a mamãe deles embora e eu queria tratar da saúde da vovó em casa, escondido!

             Agora, seus olhos deixaram escorrer a lágrima. Uma lágrima, dolorosamente furtiva e ele continuou:

             - Cuidei dela, secretamente...Naquele lugar escuro e sombrio...          E ela sobreviveu!

             -  Soube que muitas das carroças condutoras de pacientes, já deixavam os doentes no cemitério, aguardando o sinal definitivo de partida!

             Vovô, agora sorridente, falava comovido:

             - Ela sobreviveu e está aí toda bela!

             Demos um grande abraço! Um perene e afetuoso abraço... 

             Um abraço digno de um Vencedor!

             Assim, conheci "a peste" - a primeira "pandemia"- de que ouvi falar!

            Minha avó faleceu bem idosa e, muitos anos, depois do meu herói!.

                       Zelia da Costa/ Nova Mutum /MT/18:51