É CONVERSANDO QUE SE ENTENDE
- Você viu?
- O quê?
- Não viu? Era enorme! Deitada, bem no meio da estrada. Deve
estar morta!
- Eu não vi. Estava vendo a floresta. Estava olhando para o
lado. Quem era? Onde foi?
Antes que eu pedisse, ele retornou.
Lá estava ela; imóvel sobre a faixa amarela central. Embora a
estrada tivesse trânsito contínuo de caminhões, talvez por ser domingo, talvez
pelo horário de almoço ou talvez pelo santo forte da serpente que não sabíamos,
ainda, se estava viva.
Meu marido estacionou o carro e descemos. Ela parecia morta.
Ele pegou uma tira comprida, resto de pneu que havia no acostamento, se
aproximou dela e o balançou. Assustada com a ousadia, com a interferência
indevida no seu, até então, tranquilo banho de sol deu um bote. Levamos um
susto. Era grande: gorda e comprida. Ele escapou por pouco. E agora?
Ela voltou à mesma posição mais atenta aos nossos movimentos.
- Olha! Vem um caminhão! Se ficar aí, vai morrer!
- Vai claro, mas ela não está disposta a sair.
Jogamos um pedaço de pau para assustá-la. Ela não se moveu.
Percebi que estávamos desmoralizados.
- Carolina já viu que não
somos de nada. Ela não tem medo da gente.
Ele olhou pra mim com um sorriso zombeteiro e a certeza - eu
não ia permitir que nenhum mal atingisse a, agora, minha cobra Carolina.
Meu marido foi para o meio da estrada sinalizando para o
caminhoneiro que surgia.Rogava para que diminuísse a velocidade.
Eu sabia que Carolina estava vendo nossa aflição. Imóvel ela
nos observava.
O veículo passou lentamente. Era enorme. Uma carreta longa e pesada. Ela não se assustou. Quando o
motorista viu Carolina lançou sobre nós um olhar de desdém. Certamente, achou
que perdeu a oportunidade de livrar o mundo de mais uma cobra. Seguiu
aborrecido. A ele se seguiram mais três e uma moto com dois rapazes que estacionaram
mais adiante e vieram ao nosso encontro.
- Ela foi atropelada?
- Ainda não, respondi apreensiva.
Não sabia qual o interesse deles em Carolina. Fui logo
deixando claro:
- Eu não a quero ferida.
Um deles se embrenhou pelo matagal. Voltou com um galho
coberto de folhas que despiu rápido liberando uma forquilha e tentou usá-lo
para puxar Carolina. Ela, arrogante levantou a cabeça e se ergueu corajosa e
ameaçadora escapando da armadilha. O outro rapaz com sotaque regional carregado
e com um jeito de quem sabia o que estava dizendo, rindo falou:
- Eta! Que ela agora tá braba! Enrodilhou-se toda pra atacar!
Ficou nervosa a bicha! Ê jiboião!
Súbito, fez-se uma procissão de caminhões. Meu marido continuava sinalizando junto
com um dos motociclistas e os caminhoneiros ao passar, ora aprovavam, ora achavam
tolice tanta preocupação com uma jiboia.
Aquela era uma estrada importante e
parece que, agora sim, chegara hora preferida para o transporte da soja, riqueza da região, rumo à exportação.
Carolina sentiu estar no centro das
atenções e comecei a ficar aflita com a situação:
- Se você continuar no meio da estrada vai morrer. Nós não
vamos poder ficar aqui toda vida. Vamos,
sai daí! Sai logo! As pessoas vão matar você. A gente não quer que isso
aconteça. Anda, sai logo enquanto não vem caminhão. Insisti comovida, mais de
uma vez.
Então, ela esticou o
corpo no chão e ergueu só a cabeça. Sem nos perder de vista começou a vir de ré na nossa
direção. Atravessou, lentamente, a pista. Venceu o acostamento, sempre nos
olhando. A ponta do rabo bateu no meio fio que limitava a estrada. Ele o
contornou com suavidade enquanto o resto do corpo deslizava. Com elegância,
sempre andando para trás, ela penetrou no matagal e ainda com a cabeça erguida
desapareceu.
Os dois rapazes se despediram sorridentes e
agradecemos pela solidariedade. Felizes se foram.
-
Pronto, sua Carolina está salva!
- Não está, não. Ela pensa que me engana. Ela
está escondida aqui na beiradinha da
mata esperando a gente sair pra ela voltar. É tinhosa a bichinha.
-
Ah! Essa não! Como você pode saber?
- Encosta a caminhonete bem junto ao
meio fio, vai devagar e ronca o motor com força, bem ali onde ela entrou. Você
vai ver!
Ele foi em silêncio até o ponto
indicado. Quando o motor roncou... Carolina disparou floresta adentro. O mato
balançava na sua fuga aflita!
Rimos muito. Ela deve estar correndo
até hoje.
O que mais me intriga é por que ela não
seguiu em frente? Por que não atravessou a estrada, se estava posicionada
naquela direção. Era o mais lógico.
Seguir em frente. Por que ela veio de ré e, desafiadoramente, passou entre nós?
Tudo levava a crer que ela seguiria para o outro lado da floresta.Seria a rota
natural. Se ela nos temia por que passou
entre nós?
Não, não nos temeu. Entendeu e confiou. Só
isso.
- Agora me diz. Por que Carolina?
- Talvez, porque toda Carolina que eu
conheço é inteligente e audaciosa.
Ele riu balançando a cabeça.
Por onde andará minha Carolina?
Por onde for... Deus a proteja!