segunda-feira, 24 de setembro de 2012

NOVAMENTE.DE NOVO. OUTRA VEZ?



               NOVAMENTE. DE NOVO. OUTRA VEZ?

         A política não é uma atividade precipuamente honesta.
Gostou da precípua?
Devo o meu, às vezes, extemporâneo vocabulário aos sensacionais professores de Latim. Lamento todos os dias a retirada desta matéria do currículo. O Latim dilatava a compreensão do nosso idioma, mexia com a organização cerebral da comunicação. Se não escrevo bem, com certeza eu seria bem pior no manejo da nossa língua, caso não tivesse a honra de ter sido aluna de dona Alvina e de Wandick Londres da Nóbrega, a “papisa” e o “papa” da língua latina.
Devemos a anemia grassante do ensino brasileiro, entre outras mediocridades, às atitudes boçais de falsos luminares teóricos da Educação, que reduziram a luz e a energia da produção literária dos alunos. As extrações do Latim e das aulas de Música  nunca se justificaram racionalmente,  embora para aqueles, estas matérias fossem adereços que sofisticavam inutilmente o ensino popular.“Era gastar vela com defunto barato”- deviam pensar!
O Latim garantia, isto sim, a compreensão mais aprofundada do texto e rompia os limites da interpretação. A música exercitava a sensibilidade  e desenvolvia o bom gosto pela arte. Era fruto do empenho de um dos nossos grandes compositores - Villa Lobos, que fez introduzir o canto coral nas escolas.
Não superamos esta mazela de aviltante retrocesso e o registro ingênuo da desmedida aprovação que manipula o acesso de todos ao conhecimento. A retirada do ensino do Francês, do Latim e da Música foi medida covarde para baratear o custo do Ensino Brasileiro.
Sob a falsa pretensão de aproximar a nova parca Educação das raízes nacionais deram “uma rasteira brasileira” na população.
Agora, corremos atrás do prejuízo tentando reintroduzir o ensino da Música, sem a qualidade e a estrutura necessárias.   
         O Latim tornava coerentes as regras de ortografia e toda nossa gramática ganhava brilho e autenticidade. Não preciso enfatizar a origem latina da língua portuguesa. O Latim facilitava a composição do texto e colaborava  com a organização mental e emocional da linguagem. O nosso vocabulário se enriquecia dando à palavra além da luz, colorido e outras dimensões.
      O Francês oferecia para estudo do idioma a sua rica gramática. Possibilitava acesso à importância dos seus filósofos, promovia o ingresso a sua literatura pela magia das fábulas e ainda construía critérios que permitiam dimensionar  e julgar a importância da dinâmica histórica do poder político que impõe pensamento e linguagem escrita e cantada como fazem, modernamente, os Estados Unidos num outro nível de qualidade e ação.
    Tudo que disse até aqui nada tem haver com a intenção que iniciei o texto, ou melhor, tem sim, quando penso que a política  é uma atividade milenar e que, se acompanharmos sua evolução histórica, teremos o registro de personagens cujas atuações resultaram consequências benéficas ou desastrosamente lamentáveis, por tempo ainda não definido.
 A linguagem política ambígua e venenosa exige um certo grau de instrução, lucidez e desconfiança, pois, guarda nas entrelinhas a verdade sombria de suas pretensões.
        Para mim, a política abriga duas classes humanas de atuação:
- a que luta por princípios  e a que luta para impor os seus princípios.
        O certo é que a segunda ignora e destrói todo e qualquer limite que se interponha a seus interesses, sempre escusos e sorrateiros. Se levarmos para o campo filosófico é a eterna luta do bem contra o mal. Nesse caso o mal se traveste de paternal doação o que confere a seus opositores o signo diabólico.
        O quadro está exposto. Ele desafia nossa observação e equilíbrio neste momento de perigoso transcurso histórico. O certo é que temos diante de nós a evoluir, o cenário de ações descritas e desempenhadas com um custo de consequências medonhas, praticamente insuperáveis, já que o tempo não perdoa seu desperdício e o que deixa de ser realizado perde objetivo e alcance.
        Eis o “Mensalão”. Não é um fato novo. Quando se criou o sistema político foi a ele acoplado o sistema corrupto. Homens dignos e justos dividem o palco de atuações com a corja que defende seus objetivos sórdidos de dominação.
        Como num jogo, porém entorpecida pela surpresa dos fatos somados à audácia e à covardia dos oponentes, a população, incapaz de dimensionar o alcance da tragédia e o efeito nefasto em sua própria vida assiste dos camarotes e das arquibancadas, em seus diversos níveis de compreensão, instrução  e interesse, o desenrolar da cena caótica, sem perceber que ali como há séculos, a macabra História se repete.
     Em risco, o destino de uma Nação cujo povo contido por uma educação cerceada ignora o poder do conhecimento.
Obs.: Não posso cometer a injustiça de omitir o nome das grandes professoras  Opala e Níobe de Música e Aline de Francês. Toda minha gratidão.

domingo, 23 de setembro de 2012

VIAGEM GRATUITA



                 VIAGEM GRATUITA
      
  O Tempo tem ocupado minhas reflexões. Será porque o Futuro encurtou? Resolvi pensar a respeito.
        Tenho feito algumas viagens ao Passado. Saudades? Certamente. Mas isto eu sempre fiz. As lembranças amargas foram sendo digeridas e se tornaram episódios compreensíveis no contexto natural dos acontecimentos.
O fato que me surpreende é a extensão do meu Passado. Como ficou longo... Antes, ao me lembrar, as coisas tinham uma proximidade quase vizinha. Agora, elas se distanciam no tempo e no espaço. As referências locais, os episódios rememorados e hoje descritos por mim são envoltos numa interrogação incrédula das pessoas que os ouvem e as personagens citadas assumem então, duvidosa existência. Talvez, eu seja responsável por estas atitudes já que vivi situações de absurda realidade. Agora pense comigo: a Realidade não é absurda?
Lembro-me de inúmeras vezes, seguir o percurso das formigas. Eu era criança e via que a cada encontro no caminho, elas paravam e pareciam cochichar alguma coisa, enquanto as ágeis perninhas dianteiras erguidas cruzavam a se tocar e a moverem agitadas como se trocando informação preciosa e urgente. A razão não era minha presença porque as duas me viam. Não eram estúpidas de falar sobre o óbvio. Devia ser um papo sobre o clima, a comida, o caminho ou o destino dos alimentos. Se acaso eu punha o dedo interrompendo o acesso, elas enlouqueciam. Com o passar dos anos percebi o quanto somos parecidos. É. Nós todos. Nós e as formigas. Se algo se interpõe de forma inesperada a nossa trajetória há uma desorientação momentânea. O imprevisto nos pertuba e aciona nossas defesas.
Ante a Natureza e seus exemplos de ação e reação fui dedicada discípula e atenta observadora do transcurso deste Passado que se faz Presente.
Ao mergulhar no meu viver antigo percebo a multiplicidade de existências que desfrutamos. Não é uma só a vida – são muitas. Não sou uma só pessoa – sou várias. Então viver é um êxtase! Ora de inebriante felicidade, ora de melancólica agonia. Vivendo a intercessão de todos os sentimentos, assim como a Natureza, tempestades e bonanças, calmarias e vendavais, terremotos e vulcões a criar novas belas e inacreditáveis  paisagens. Desta mesma maneira fui evoluindo na passagem do tempo. O turbilhão das imagens de pessoas, animais, lugares dá-me a sensação de embriaguês momentânea. É claro que falo isto só pra você e sei que conto com a sua discreção, não tivesse eu esta certeza, evitaria tal assunto.
Sim! E o Presente? Ah! Como é fugaz!
O Presente é um milagre e como todo milagre é de difícil comprovação. Basta dizer que a frase que acabei de concluir... já é Passado! Portanto, vamos nos ater ao Futuro! Este sim, podemos usar em nosso benefício e chancelá-lo num Passado próximo com orgulho presente. Outra coisa que me emociona é saber que embora eu use a expressão Meu Passado, ela não corresponde à verdade porque nele atuaram vários intérpretes e assim, cada pedaço dele é parte de outras histórias de outros indivíduos, numa escala difusa das vidas que se cruzam.
O bom de viajar ao Passado, além de tudo, é o preço.

sábado, 1 de setembro de 2012

E AÍ?



                                      E  AÍ?

O suor misturado à poeira do barro vermelho que a brisa rasteira elevava, só pra comprometer nossa aparência e tornar a caminhada uma espécie de novo calvário a ser cumprido, escorria grosso como lágrimas de cera e ardia, se invadia o olhar. Além do mais, aqueles embrulhos pesados já no início da caminhada, agora se tornavam fardos difíceis de transportar. Nossos passos jovens, antes leves e divertidos, já não se mostravam dispostos a se aventurar na busca de outro caminho, alternativa árida e desconhecida. A curiosidade, o compromisso, a lealdade e a gratidão me obrigavam a seguir em frente. Excluindo a curiosidade, combustível para esta aventura, sobravam os sentimentos nobres e foram eles os responsáveis pela melhor parte desta história.
Para você entender melhor é preciso conhecer o início. Sempre tive muitos amigos. Sempre os amei e os amo. Todas as vezes que nos encontrávamos, eu contava as histórias trágicas observadas por mim e vividas por meus alunos e suas famílias na minha nova escola. Aquela experiência perversa era tão distante do nosso cotidiano que todos duvidavam da veracidade dos fatos. Eu os entendia. Eles criam que eu carregava nas tintas colorindo com tons trágicos as histórias, as cenas e as personagens que descrevia, comovida às lágrimas. Mesmo assim doavam alimentos, roupas, material escolar, etc.
A grandeza da tragédia de um universo estranho e próximo, quase vizinho, encheu Maria Lúcia de curiosidade e dúvidas. Com certeza, ela pensava que deveria haver um fundo de verdade, mas na dimensão que eu transmitia, por certo, era um exagero.
- Um dia vou até sua Escola conhecer essas crianças.
- Seria bom. Vá lá. Tem que ver pra crer. Se eu não estivesse lá, também não acreditaria.
E um dia ela foi.
Neste dia, justo neste dia, Luzia, a criança que acreditava que eu era capaz de solucionar todos os problemas dolorosos, estava aflita me esperando e, sem deixar que eu descesse do táxi, alugado pelo Estado e que nos transportava da estação de Santa Cruz  para a Escola, pediu-me que fosse a casa das gêmeas de quem ela, insistentemente, já me havia falado:
- Se a senhora não for lá hoje, elas vão morrer. As “geminhas” vão morrer!
- Ah! Meu Deus! Luzia você tem que parar com isso. Eu nem sei onde essa gente mora!
- Eu sei, Professora! Eu levo a senhora lá! Tem que seguir a estrada e entrar na porteira junto ao pé de pau.
Ela falava encarando seu Inacinho, o motorista que nos conduzia e que não teve coragem de negar o favor à criança.
Os grandes olhos azuis de Maria Lúcia pareciam duas lanternas faiscantes. Afinal, agora poderia avaliar “in loco” a veracidade da situação.
Pedi que os três esperassem por mim. A Escola aguardava nomeação de nova diretora. Eu era, até sua chegada, a responsável e isso já durava quase dois anos.
Depois das crianças cantarem o Hino Nacional hasteando a Bandeira do Brasil e todos instalados na sala de aula, voltei ao carro e partimos rumo a casa das geminhas. Fomos de carro até a porteira. Do pé de pau até a casa, andamos cerca de dois quilômetros pra dentro da fazenda. O mato que roçava nosso corpo pelo exíguo caminho fazia coçar as pernas. Maria Lúcia ria, um riso nervoso, intrigada e aflita. Estava vivendo uma aventura. Depois de um tempo na longa caminhada... chegamos. Era uma casa de barro, não como a do João, o pássaro, grande construtor. Nem poderia ser chamada de casa de taipa porque não era. Era uma grosseira casa de barro. Paredes mal alinhadas. Telhas mal ajustadas. No exíguo vão de um só cômodo, uma janela. Não havia camas nem mesa. Dormiam, depois eu soube,  sobre aqueles pedaços de papelão encostados. No canto um fogão à lenha cuja principal função era aquecer a família durante a noite, espantar os insetos e responsável pelo negrume de fuligem das paredes e pelo cheiro forte e quase sufocante de fumaça. Sobre ele, uma panela deformada e preta e ao lado uma lata de doce vazia e velha que servia de prato. Como era única, soube que primeiro comiam os filhos mais velhos que iam pra lida, enquanto os pequenininhos aguardavam a vez. Num canto, um caixote pequeno; dentro dele duas crianças brancas, louras. Duas miseráveis crianças brancas. Neste país mestiço também existem brancos miseráveis. Dois bebes recém-nascidos e tinham as pernas enroladas num papelão grosso. Pareciam siamesas de tão grudadas e tinham olhos e pestanas enormes e alguns dentinhos para meu espanto.
- Por que estão com as pernas amarradas desta maneira? Perguntei horrorizada, quando consegui falar.
- “Causo os ratos, dona. Eles rói os dedinhu delas. Já rueram num pé, quase todos”.
- Que idade elas tem?
- Dois anos!
Dois anos? Não era possível! Pareciam dois nenéns de meses.
Em desespero saí. Olhei pro céu e não resisti:
- Deus não existe! Gritei!
- Dona num diz issu. Eu só acreditei Nele quando a senhora entrou aqui, dona. Num diz isso.
Agora ele tinha fé e esperança. Temi decepcioná-lo.
Era o pai. Um homem seco. Um velho que, depois eu soube, tinha trinta e cinco anos.
Explodi num choro convulsivo e agora mesmo estou chorando ao lembrar.
Esta frase repercutiu na minha vida até hoje e, é responsável por todas as atitudes corajosas que tomei.
Eram onze filhos. O mais velho tinha doze anos. Uma criança esmirrada. Todos, pais e filhos, desnutridos, esqueléticos.
Tinham dentes estraçalhados, mas sorrisos generosos e nos olhavam como se pedissem perdão pela miséria.
Minha amiga Maria Lúcia estava em estado de choque. Incapaz de conter as lágrimas, confidenciou-me:
- Ver é muito pior do que ouvir você contar!
Pedi ao seu Inacinho que nos levasse ao centro de Santa Cruz. Comprei óleo, sal, macarrão, arroz, salsichas, leite, café, fubá, açúcar e uma panela. Treze pratos, treze garfos e uma faca. Feijão não. Feijão é para quem pode esperar. A fome tem pressa. Eram onze crianças. Eu não tinha muito dinheiro. Comprei fiado. Os comerciantes já estavam acostumados com as minhas investidas. Diante das minhas angústias muitos até doavam.  Entreguei as compras ao pai que nos aguardava junto ao pé de pau.
Ela sentiu a gravidade da situação e aflita resolveu me ajudar. Maria Lúcia tinha um tio espírita que mantinha um grande centro. Ela contou pra ele o que viu e ele doou alimentos suficientes para mais de um mês. Comprei mais panelas, talheres, sabonetes, detergentes e comuniquei ao serviço social da Administração Regional de Santa Cruz a miserável situação daquela família. Fui informada que nada poderia ser feito porque eles não tinham Registro de Nascimento. Nem os pais. Nem os filhos. Fantástico! O serviço público deste país, a assistência social estava sendo negada a quem mais precisava dela. Depois de um revoltado discurso bradado por mim resolveram me atender e enviar uma condução e trazer a família para, finalmente, serem trazidos à luz da existência legal.
Durante o ano as mulheres que frequentavam o centro espírita costuravam roupas para crianças. Maria Lúcia pediu que vestissem minhas crianças necessitadas e foi assim que aconteceu.
Daí para frente, no dia vinte e sete de setembro, dia de homenagem aos santos Cosme e Damião, santos festejados com balas e doces, minhas crianças todas passaram a ganhar, além das festejadas guloseimas, conjuntos de roupas feitas pelas devotas do centro e brinquedos.
Dá pra você sentir a emoção de Maria Lúcia?
Ela ia pessoalmente levar e distribuir.
Eu ficava imaginando quando ela contava pra alguém a triste história de que agora ela era testemunha ocular e ria pensando o quanto as pessoas também duvidariam de seus depoimentos. Tudo porque toda aquela miséria ocorria em algumas fazendas, zona rural do Rio de Janeiro, a uma hora e meia do centro da cidade.
 Bem, como eu ia dizendo, depois de uns dois anos aconteceu um fato assombroso e tem tudo a ver com os enormes pacotes que pesavam como chumbo no início desta narrativa. Lembra-se deles?  Aqueles dos quais eu comecei a falar? Pois bem. Contei tudo isso para justificar a razão pela qual aceitei a tarefa de entregá-los ao dono. Ah! O dono.
Recebi o seguinte recado de minha amiga Maria Lúcia:
- Meu tio pediu a você que entregue este presente a um menino que nasceu hoje, aí.
- Nasceu onde?
- Não sei. Deve ser aí por perto.
- Como vou saber?
- Sei lá. Procura aí pelas casas. Deve ser perto.
- Maria Lúcia, assim fica muito vago. As casas são distantes e longe uma das outras.
- Foi um pedido de alguém lá do centro.
- Que alguém?
- Alguém que veio e pediu.
        Eu não podia negar ao tio dela, nem a ela e muito menos a esse alguém, ”sei lá quem”.
Quando acabou o turno na escola, meio dia, olhei aqueles embrulhos.
- Faço questão de ajudar. Vou pagar pra ver o que isso vai dar.
        E Nancy, minha querida amiga, ria de chorar. Olha só a encrenca que você se meteu. Como é que você vai encontrar esta criança. Tem alguma ideia?
- Nenhuma. Você vai comigo?
- Claro! Como é que você vai conseguir sozinha andar com esse peso?
- Acho que vou seguir esta estrada daqui de frente.
- Por que não vai por essa nossa?
- Não. Vamos seguir esta que atravessa a Rio/Santos.
- Por isso que estas “bombas” arrebentam na sua mão. Olha só você, já está achando que vai encontrar esta criança neste caminho.
        E riu uma gostosa gargalhada.
 Agora estávamos quase no fim da estrada. Exautas. Suadas e cobertas de poeira.
Sol a pino. Ela ficava na estrada com os pacotes aguardando, enquanto eu abria a porteira e seguia dentro até a casa.
- Por favor, aqui mora alguém com neném novo?
Sempre tinha alguém com recém-nascido. O governo tinha inventado pagar alguns cruzeiros por filho, uma bolsa família antiga e aqueles infelizes analfabetos e abandonados achavam que era um grande “negócio” fazer mais alguns. Assim, as famílias cresceram assustadoramente. Só que ninguém tinha nascido naquele dia.
        Eu já estava desanimada quando vi um barraco de madeira com uma cerca de arame, construído no terreno da linha férrea, abandonada graças à incompetência dos governantes, cuja visão desfocada do futuro deixou sucatear nossas linhas férreas. A casa estava fechada. Levantei o pau que emendado no arame fazia as vezes de portão, artifício usado naquela redondeza. Entramos.
- Acha que tem alguém aí?
- Bate, ué. É a última casa. Parece que fez barulho lá dentro.
- Tem alguém aí? Gritamos em coro.
        - Entra, dona. Empurra a porta. Respondeu uma voz feminina.
Empurramos a porta de tábuas velhas, mas cuidadas.
Lá dentro um vão dividido por meia parede de tábuas, com uma cortina de chita desbotada fingindo porta. A voz feminina vinha de dentro deste compartimento.
- Entra dona! Ela insistiu.
- Nós estávamos deslocadas ali dentro. Não havia nada.
- A senhora pode vir até aqui?
A voz frágil e jovem respondeu:
- Dona se achegue, por favor.
Olhei pra Nancy. Ela sacudiu a cabeça aprovando com um ar curioso.
- Se achegue, por favor, dona.
 Afastei a cortina e deparei com um cubículo também vazio. No chão de terra, sobre uns panos, uma mulher nova e uma criança enrolada.
Embora eu já estivesse acostumada com a miséria que me cercava, aquilo era constrangedor.
- Quando nasceu seu neném? Ele é lindo! E era.
Um guri forte de cabelos fartos e negros. Um caboclinho.
- Nasceu de madrugada.
- Aqui?
- Foi.
- Você teve esse neném sozinha?
Nancy estava sem fala. Quando conseguiu dizer alguma coisa foi baixinho:
- Entrega isso e vamos embora.
- Escuta moça. Nós andamos nesse sol até aqui porque precisávamos lhe entregar um presente. Está vendo estes embrulhos. Vou abrir pra você.
 Abri os pacotes e ali tinha um enxoval completo: fraldas, macacõezinhos vários, mamadeiras, babadores, cobertores, lençóis, mantas, chupetas, latas de leite em pó, travesseiro, etc. De cada pacote que abria saía mais e mais do simples ao requintado.
- Por isso pesava tanto, resmungou Nancy; estava tudo comprimido aí dentro.
Retirei uma roupinha para ela vestir a criança.
- Escuta moça, eu não sei quem seu filho vai ser, mas ele é alguém muito querido e importante. Tudo isso é dele.
- Deus lhe pague, dona. Brigado. Deus lhe pague.
- Escuta. Nós só trouxemos. Outras pessoas mandaram.
- Deus abençoe elas também.
- Felicidades, viu. Pra vocês dois.
Saímos dali sem coseguir dizer nada. Estávamos em choque. No fundo, a gente tinha certeza de que não encontraria a criança. Era praticamente impossível dado as condições exigidas – um menino nascido aquele dia.
De vez em quando nos olhávamos incrédulas.
No dia seguinte, refeitas do impacto, resolvemos voltar lá.
- Você viu que nós ficamos “tão patetas” que nem perguntamos o nome da criança?
- Nem dela.
 - Vamos lá depois da saída das crianças.
Fomos. Chamamos a moça. Empurramos a porta.
Tornamos a chamar. Entramos. Ninguém.
- Ei donas! Tem ninguém aí não.
- A moça foi embora com o neném hoje? A que horas? Perguntei ao jovem que era vizinho de frente e que nos avisava.
- Não sei. Aí não tem ninguém faz tempo, hein. Tinha um casal. Quando o homem foi embora ela já num tava mais aí. Essa casa tá abandonada... shiiii... num é de hoje.
Quanto às geminhas... Depois eu conto, não quero me alongar.
zeliadacostamt@gmail.com