E AÍ?
O
suor misturado à poeira do barro vermelho que a brisa rasteira elevava, só pra
comprometer nossa aparência e tornar a caminhada uma espécie de novo calvário a
ser cumprido, escorria grosso como lágrimas de cera e ardia, se invadia o
olhar. Além do mais, aqueles embrulhos pesados já no início da caminhada, agora
se tornavam fardos difíceis de transportar. Nossos passos jovens, antes leves e
divertidos, já não se mostravam dispostos a se aventurar na busca de outro
caminho, alternativa árida e desconhecida. A curiosidade, o compromisso, a
lealdade e a gratidão me obrigavam a seguir em frente. Excluindo a curiosidade,
combustível para esta aventura, sobravam os sentimentos nobres e foram eles os
responsáveis pela melhor parte desta história.
Para
você entender melhor é preciso conhecer o início. Sempre tive muitos amigos.
Sempre os amei e os amo. Todas as vezes que nos encontrávamos, eu contava as
histórias trágicas observadas por mim e vividas por meus alunos e suas famílias
na minha nova escola. Aquela experiência perversa era tão distante do nosso
cotidiano que todos duvidavam da veracidade dos fatos. Eu os entendia. Eles
criam que eu carregava nas tintas colorindo
com tons trágicos as histórias, as cenas e as personagens que descrevia,
comovida às lágrimas. Mesmo assim doavam alimentos, roupas, material escolar,
etc.
A
grandeza da tragédia de um universo estranho e próximo, quase vizinho, encheu
Maria Lúcia de curiosidade e dúvidas. Com certeza, ela pensava que deveria
haver um fundo de verdade, mas na
dimensão que eu transmitia, por certo, era um exagero.
-
Um dia vou até sua Escola conhecer essas crianças.
-
Seria bom. Vá lá. Tem que ver pra crer. Se eu não estivesse lá, também não
acreditaria.
E
um dia ela foi.
Neste
dia, justo neste dia, Luzia, a criança que acreditava que eu era capaz de solucionar
todos os problemas dolorosos, estava aflita me esperando e, sem deixar que eu descesse
do táxi, alugado pelo Estado e que nos transportava da estação de Santa
Cruz para a Escola, pediu-me que fosse a
casa das gêmeas de quem ela, insistentemente, já me havia falado:
-
Se a senhora não for lá hoje, elas vão morrer. As “geminhas” vão morrer!
-
Ah! Meu Deus! Luzia você tem que parar com isso. Eu nem sei onde essa gente
mora!
-
Eu sei, Professora! Eu levo a senhora lá! Tem que seguir a estrada e entrar na
porteira junto ao pé de pau.
Ela
falava encarando seu Inacinho, o motorista que nos conduzia e que não teve
coragem de negar o favor à criança.
Os
grandes olhos azuis de Maria Lúcia pareciam duas lanternas faiscantes. Afinal,
agora poderia avaliar “in loco” a veracidade da situação.
Pedi
que os três esperassem por mim. A Escola aguardava nomeação de nova diretora.
Eu era, até sua chegada, a responsável e isso já durava quase dois anos.
Depois
das crianças cantarem o Hino Nacional hasteando a Bandeira do Brasil e todos
instalados na sala de aula, voltei ao carro e partimos rumo a casa das geminhas.
Fomos de carro até a porteira. Do pé de pau até a casa, andamos cerca de dois
quilômetros pra dentro da fazenda. O mato que roçava nosso corpo pelo exíguo
caminho fazia coçar as pernas. Maria Lúcia ria, um riso nervoso, intrigada e
aflita. Estava vivendo uma aventura. Depois de um tempo na longa caminhada...
chegamos. Era uma casa de barro, não como a do João, o pássaro, grande
construtor. Nem poderia ser chamada de casa de taipa porque não era. Era uma
grosseira casa de barro. Paredes mal alinhadas. Telhas mal ajustadas. No exíguo
vão de um só cômodo, uma janela. Não havia camas nem mesa. Dormiam, depois eu
soube, sobre aqueles pedaços de papelão
encostados. No canto um fogão à lenha cuja principal função era aquecer a
família durante a noite, espantar os insetos e responsável pelo negrume de
fuligem das paredes e pelo cheiro forte e quase sufocante de fumaça. Sobre ele,
uma panela deformada e preta e ao lado uma lata de doce vazia e velha que
servia de prato. Como era única, soube que primeiro comiam os filhos mais
velhos que iam pra lida, enquanto os pequenininhos aguardavam a vez. Num canto,
um caixote pequeno; dentro dele duas crianças brancas, louras. Duas miseráveis
crianças brancas. Neste país mestiço também existem brancos miseráveis. Dois
bebes recém-nascidos e tinham as pernas enroladas num papelão grosso. Pareciam
siamesas de tão grudadas e tinham olhos e pestanas enormes e alguns dentinhos
para meu espanto.
-
Por que estão com as pernas amarradas desta maneira? Perguntei horrorizada,
quando consegui falar.
- “Causo
os ratos, dona. Eles rói os dedinhu delas. Já rueram num pé, quase todos”.
-
Que idade elas tem?
-
Dois anos!
Dois
anos? Não era possível! Pareciam dois nenéns de meses.
Em
desespero saí. Olhei pro céu e não resisti:
-
Deus não existe! Gritei!
-
Dona num diz issu. Eu só acreditei Nele quando a senhora entrou aqui, dona. Num
diz isso.
Agora
ele tinha fé e esperança. Temi decepcioná-lo.
Era
o pai. Um homem seco. Um velho que, depois eu soube, tinha trinta e cinco anos.
Explodi
num choro convulsivo e agora mesmo estou chorando ao lembrar.
Esta
frase repercutiu na minha vida até hoje e, é responsável por todas as atitudes
corajosas que tomei.
Eram
onze filhos. O mais velho tinha doze anos. Uma criança esmirrada. Todos, pais e
filhos, desnutridos, esqueléticos.
Tinham
dentes estraçalhados, mas sorrisos generosos e nos olhavam como se pedissem
perdão pela miséria.
Minha
amiga Maria Lúcia estava em estado de choque. Incapaz de conter as lágrimas,
confidenciou-me:
-
Ver é muito pior do que ouvir você contar!
Pedi
ao seu Inacinho que nos levasse ao centro de Santa Cruz. Comprei óleo, sal,
macarrão, arroz, salsichas, leite, café, fubá, açúcar e uma panela. Treze
pratos, treze garfos e uma faca. Feijão não. Feijão é para quem pode esperar. A
fome tem pressa. Eram onze crianças. Eu não tinha muito dinheiro. Comprei
fiado. Os comerciantes já estavam acostumados com as minhas investidas. Diante
das minhas angústias muitos até doavam. Entreguei as compras ao pai que nos aguardava
junto ao pé de pau.
Ela
sentiu a gravidade da situação e aflita resolveu me ajudar. Maria Lúcia tinha
um tio espírita que mantinha um grande centro. Ela contou pra ele o que viu e
ele doou alimentos suficientes para mais de um mês. Comprei mais panelas,
talheres, sabonetes, detergentes e comuniquei ao serviço social da
Administração Regional de Santa Cruz a miserável situação daquela família. Fui
informada que nada poderia ser feito porque eles não tinham Registro de Nascimento.
Nem os pais. Nem os filhos. Fantástico! O serviço público deste país, a
assistência social estava sendo negada a quem mais precisava dela. Depois de um
revoltado discurso bradado por mim resolveram me atender e enviar uma condução
e trazer a família para, finalmente, serem trazidos à luz da existência legal.
Durante
o ano as mulheres que frequentavam o centro espírita costuravam roupas para
crianças. Maria Lúcia pediu que vestissem minhas crianças necessitadas e foi
assim que aconteceu.
Daí
para frente, no dia vinte e sete de setembro, dia de homenagem aos santos Cosme
e Damião, santos festejados com balas e doces, minhas crianças todas passaram a
ganhar, além das festejadas guloseimas, conjuntos de roupas feitas pelas
devotas do centro e brinquedos.
Dá
pra você sentir a emoção de Maria Lúcia?
Ela
ia pessoalmente levar e distribuir.
Eu
ficava imaginando quando ela contava pra alguém a triste história de que agora
ela era testemunha ocular e ria pensando o quanto as pessoas também duvidariam
de seus depoimentos. Tudo porque toda aquela miséria ocorria em algumas
fazendas, zona rural do Rio de Janeiro, a uma hora e meia do centro da cidade.
Bem, como eu ia dizendo, depois de uns dois
anos aconteceu um fato assombroso e tem tudo a ver com os enormes pacotes que
pesavam como chumbo no início desta narrativa. Lembra-se deles? Aqueles dos quais eu comecei a falar? Pois
bem. Contei tudo isso para justificar a razão pela qual aceitei a tarefa de
entregá-los ao dono. Ah! O dono.
Recebi
o seguinte recado de minha amiga Maria Lúcia:
-
Meu tio pediu a você que entregue este presente a um menino que nasceu hoje,
aí.
- Nasceu
onde?
-
Não sei. Deve ser aí por perto.
-
Como vou saber?
-
Sei lá. Procura aí pelas casas. Deve ser perto.
-
Maria Lúcia, assim fica muito vago. As casas são distantes e longe uma das
outras.
-
Foi um pedido de alguém lá do centro.
-
Que alguém?
-
Alguém que veio e pediu.
Eu
não podia negar ao tio dela, nem a ela e muito menos a esse alguém, ”sei lá quem”.
Quando
acabou o turno na escola, meio dia, olhei aqueles embrulhos.
-
Faço questão de ajudar. Vou pagar pra ver o que isso vai dar.
E
Nancy, minha querida amiga, ria de chorar. Olha só a encrenca que você se
meteu. Como é que você vai encontrar esta criança. Tem alguma ideia?
- Nenhuma.
Você vai comigo?
-
Claro! Como é que você vai conseguir sozinha andar com esse peso?
-
Acho que vou seguir esta estrada daqui de frente.
-
Por que não vai por essa nossa?
-
Não. Vamos seguir esta que atravessa a Rio/Santos.
-
Por isso que estas “bombas” arrebentam na sua mão. Olha só você, já está
achando que vai encontrar esta criança neste caminho.
E
riu uma gostosa gargalhada.
Agora estávamos quase no fim da estrada.
Exautas. Suadas e cobertas de poeira.
Sol
a pino. Ela ficava na estrada com os pacotes aguardando, enquanto eu abria a
porteira e seguia dentro até a casa.
-
Por favor, aqui mora alguém com neném novo?
Sempre
tinha alguém com recém-nascido. O governo tinha inventado pagar alguns cruzeiros
por filho, uma bolsa família antiga e aqueles infelizes analfabetos e
abandonados achavam que era um grande “negócio” fazer mais alguns. Assim, as
famílias cresceram assustadoramente. Só que ninguém tinha nascido naquele dia.
Eu
já estava desanimada quando vi um barraco de madeira com uma cerca de arame,
construído no terreno da linha férrea, abandonada graças à incompetência dos
governantes, cuja visão desfocada do futuro deixou sucatear nossas linhas
férreas. A casa estava fechada. Levantei o pau que emendado no arame fazia as
vezes de portão, artifício usado naquela redondeza. Entramos.
-
Acha que tem alguém aí?
-
Bate, ué. É a última casa. Parece que fez barulho lá dentro.
-
Tem alguém aí? Gritamos em coro.
- Entra, dona. Empurra a porta. Respondeu uma voz feminina.
Empurramos
a porta de tábuas velhas, mas cuidadas.
Lá
dentro um vão dividido por meia parede de tábuas, com uma cortina de chita
desbotada fingindo porta. A voz feminina vinha de dentro deste compartimento.
-
Entra dona! Ela insistiu.
-
Nós estávamos deslocadas ali dentro. Não havia nada.
- A
senhora pode vir até aqui?
A
voz frágil e jovem respondeu:
-
Dona se achegue, por favor.
Olhei
pra Nancy. Ela sacudiu a cabeça aprovando com um ar curioso.
-
Se achegue, por favor, dona.
Afastei a cortina e deparei com um cubículo
também vazio. No chão de terra, sobre uns panos, uma mulher nova e uma criança
enrolada.
Embora
eu já estivesse acostumada com a miséria que me cercava, aquilo era
constrangedor.
-
Quando nasceu seu neném? Ele é lindo! E era.
Um
guri forte de cabelos fartos e negros. Um caboclinho.
-
Nasceu de madrugada.
-
Aqui?
-
Foi.
-
Você teve esse neném sozinha?
Nancy
estava sem fala. Quando conseguiu dizer alguma coisa foi baixinho:
-
Entrega isso e vamos embora.
- Escuta
moça. Nós andamos nesse sol até aqui porque precisávamos lhe entregar um
presente. Está vendo estes embrulhos. Vou abrir pra você.
Abri os pacotes e ali tinha um enxoval
completo: fraldas, macacõezinhos vários, mamadeiras, babadores, cobertores, lençóis,
mantas, chupetas, latas de leite em pó, travesseiro, etc. De cada pacote que
abria saía mais e mais do simples ao requintado.
- Por
isso pesava tanto, resmungou Nancy; estava tudo comprimido aí dentro.
Retirei
uma roupinha para ela vestir a criança.
-
Escuta moça, eu não sei quem seu filho vai ser, mas ele é alguém muito querido
e importante. Tudo isso é dele.
-
Deus lhe pague, dona. Brigado. Deus lhe pague.
-
Escuta. Nós só trouxemos. Outras pessoas mandaram.
- Deus
abençoe elas também.
- Felicidades,
viu. Pra vocês dois.
Saímos
dali sem coseguir dizer nada. Estávamos em choque. No fundo, a gente tinha
certeza de que não encontraria a criança. Era praticamente impossível dado as
condições exigidas – um menino nascido aquele dia.
De
vez em quando nos olhávamos incrédulas.
No
dia seguinte, refeitas do impacto, resolvemos voltar lá.
-
Você viu que nós ficamos “tão patetas” que nem perguntamos o nome da criança?
-
Nem dela.
- Vamos lá depois da saída das crianças.
Fomos.
Chamamos a moça. Empurramos a porta.
Tornamos
a chamar. Entramos. Ninguém.
-
Ei donas! Tem ninguém aí não.
- A
moça foi embora com o neném hoje? A que horas? Perguntei ao jovem que era
vizinho de frente e que nos avisava.
-
Não sei. Aí não tem ninguém faz tempo, hein. Tinha um casal. Quando o homem foi
embora ela já num tava mais aí. Essa casa tá abandonada... shiiii... num é de
hoje.
Quanto
às geminhas... Depois eu conto, não
quero me alongar.
zeliadacostamt@gmail.com