quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O FAROLEIRO (parte 2)


Num domingo, de repente, ele surgiu com uma caixa pequena.
- Mãe! Seu Augustinho!
Meu Pai ria, abrindo largo: os braços e o sorriso!
- Não quis avisar! Surpresa é surpresa!
Olhando pra mim, cheio de ternura, falou ao meu ouvido:
- Vamos lá “pros” fundos ver o que eu trouxe para você!
- Fui pulando, correndo. Coração “na boca”!
A caixa não parecia pesada.
Adivinha o que eu tenho aqui dentro?
Gatinho não deveria ser, eu tinha muitos e ele sabia. Os meus e os da vizinhança e comiam todos lá em casa!
- Um cachorrinho!
Ele riu!
Meu Pai estava curioso e minha Mãe quase “caiu dura” quando ele retirou da caixa “Chico”!
Chico era lindo! Um porquinho branco com uma manchinha preta sobre um olho! Tão branco que chegava a ser cor de rosa!
- Seus olhos são azuis! Ele é todo colorido!
Seu Augustinho estava feliz com o sucesso do seu presente!
- Agora você pode “dar um descanso às galinhas”! E ria gostoso como menino travesso!
Chico  passou a ser meu melhor amigo! Conversávamos muito. Afinal, ele também era único! Quando me via, corria pra perto da tela de arame que cercava seus domínios, “roncava” baixinho para segredar coisas que só nós desfrutávamos. Eu aprendi a também “roncar”. Ele comia sempre uma cenoura que lhe oferecia e se deliciava com este carinho.
Todos os meus amigos vinham a minha casa pra “conversar” com Chico.
- Quando ele crescer você vai comer ele?
- Você está proibido de voltar aqui!
- Por quê?
- Nunca vi ninguém comer amigo!
Meus pais resolveram mandar “cimentar” a casa de Chico, era mais prático, pois, sabiam que ele ganhara a “vida eterna”.
Seu Augustinho morava sozinho no meio daquele “marzão”,  no farol. Lá, ele criava porcos, cabras, galinhas  e pescava. Falava pra mim das tempestades. Das ondas gigantescas que cobriam as pedras e que batiam furiosas nos penhascos  e dos enormes navios que ficavam parecendo cascas de nozes ao sabor da fúria!
Eu, de olhos arregalados, “via” o navio encolhendo em meio ao oceano ameaçador e o via ficando pequenininho, pequenininho...( Criança entende tudo ”ao pé da letra”).   Dizia que quando os trovões roncavam, os raios cortavam os céus e os ventos avançavam, ele cerrava as janelas todas ou as abria todas para se proteger. Empolgado com a própria narrativa, ele levantava e se erguia e crescia e parecia um “gigante” daquelas histórias que eu lia e ouvia: um deus do mar, um Netuno!
            Outras vezes, com serenidade, ele narrava suas aventuras sob as águas quando elas, pacíficas e translúcidas, compartilhavam todo o seu esplendor! Era como se eu mergulhasse com ele e tocasse a vida submarina com as próprias mãos! Dizia que era possível acariciar peixes e que muitos deles, curiosos, até o seguiam. Eu deslumbrada nem piscava!
     Ele escrevia sobre suas solitárias experiências.
     Só ia pescar de barco. Não queria ser visto por algum dos seus amigos marinhos!
      - Você gosta de flores?
      - Muito!
      - Sabe que no mar tem jardins?
      - Jura? Tem flores?
      - Tem! Tem até frutos!
      - Jura?
     - O dia que seus pais quiserem, vou levar vocês lá e se eles deixarem você vai mergulhar comigo.
     - O senhor não fica triste lá... sozinho?
(Este era um tempo em que as crianças tratavam os adultos por “senhor”).
     - Quem disse que eu fico sozinho?
     - Meu Pai!
     - Ficaria, se as gaivotas deixassem. Se não tivesse que cuidar de todos que vivem comigo e, principalmente,  do meu Farol! Se eu não estivesse lá, aqueles navios de que falei teriam afundado e muita gente já teria morrido!
     Era orgulhoso da sua responsabilidade.
     - O senhor gosta de morar lá?
     - Eu não conseguiria viver noutro lugar!
     E ficávamos ali, horas a conversar: eu e o Senhor Netuno!
zeliadacostamt@gmail.com

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O FAROLEIRO (parte 1)


Era alto, esguio, forte, pele crestada pelo sol. Sobressaía, na sua impressionante figura, a farta cabeleira branca, ressaltando o azul dos seus olhos sempre sorridentes e a expressão serena, “sonorizada” pela voz calma e pela suavidade dos gestos.
Amigo querido de meu pai, há muitos anos, a notícia da sua chegada nos deixava imensamente felizes. Quando “seu Augustinho” vinha ao continente hospedava-se lá em casa. Isto acontecia, de raro em raro, por isso a saudade era sempre muito grande em todos.
Ele era responsável pela existência de um enorme galinheiro que meu pai foi obrigado a mandar fazer. Toda vez, trazia uma “capoeira de galinhas”, uma caixa feita de madeira e tela, cheia de franguinhos.
Quando ele trouxe a primeira, nem passou pela minha cabeça que poderiam “virar” refeição. Filha única, elas se tornaram uma curiosa companhia. Comecei por dar nome a cada ave: Zangada, Vermelha, Carijó, Mansinha, Esperta, etc. Com o tempo, ficamos amigas – eu as chamava e elas atendiam – meus pais se divertiam!
Eu as colocava nos puleiros! Coitadas!
Observando meu interesse, minha mãe comprou um galo. Seu nome: “Rei”
Rei era lindo! Ostentava uma crista vermelha novinha!  Coberto de penas brilhantes, em matizes do “vinho ao café”, com um rabo  que exibia uma profusão de cores, variando entre o preto azulado , o dourado, o laranja, o castanho,o vermelho tudo misturado, integrado num brilho metálico majestoso. Um final feliz!
Comíamos alguns ovos e muitos eram distribuídos entre vizinhos e outros amigos, o resto era destinado ao “choco”. Desta forma, minha mãe me inseriu no mundo da fecundação, da procriação, com naturalidade e beleza e me expôs ao fascínio da Lua e de suas fases que propiciavam, segundo ela, o sucesso da ninhada.
A Lua ganhou um novo sentido.
A Lua era bela!Importante!Misteriosa!
A Lua tinha Poder!
A Meteorologia também ganhou novas dimensões!
Se, acaso ”roncasse trovoada”, alguns “gorariam” e deixariam de nascer muitos pintinhos. Quando começava a chover, meu coração “apertava” e eu ficava rezando para que o tempo “amainasse”.
Comecei a dominar um vocabulário específico.
Trovoadinha... tudo bem, mas se houvesse temporal...Aí, o trovão com toda sua energia falava alto e era “pura sorte” dos pintinhos que resistissem.
Era lindo acompanhar os pintinhos rompendo a casca, com um esforço inaudito e surgirem molhados, piscando aflitos sem entender a luz e o novo espaço. Depois, ver a mãe orgulhosa passear e ensiná-los a comer ciscando a terra.
Agora, seu Augustinho nos garantiu uma surpresa. Na sua última visita ficou impressionado com a quantidade de aves: quase sessenta!
Avisou a Papai que reservasse um novo espaço.
Seu Augustinho era faroleiro. Morava solitário num arquipélago e trazia consigo também, a magia de um baú de histórias.( Continua, calma)
zeliadacostamt@gmail.com

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A VIDA SE ETERNIZA


Ela amava flores. Levava-me a passear no Horto Florestal Municipal. Gostava de chamar minha atenção para o recorte das folhas, seus desenhos e os tamanhos e cores das flores. Os insetos, variedade deles e suas formas. Visitávamos, regularmente, os viveiros e ela ficava investigando para descobrir se plantas novas estavam sendo cultivadas e quais se renovavam brotando. Era encantada com os feitios das sementes.
Havia um jardineiro velhinho que nos acompanhava. Ele era “todo atenção” porque sentia o quanto seu trabalho era valorizado pela minha mãe. “Seu Chiquinho” conhecia os segredos da reprodução das plantas, do preparo das mudas. Gostava de ensinar as técnicas de “enxerto” que faziam renovar cores e espécies. Minha mãe o ouvia e encantada fazia perguntas enquanto as mãos grossas e encarquilhadas exibiam com gestos doces, ora caules, ora raízes, ora flores, ora sementes e desfiavam os segredos da terra. Com o conhecimento de quem dedicou a vida a amar a vida, explicava tudo em detalhes com carinho e paciência à minha curiosidade aflita.
Seu Chiquinho nos recebeu um dia no portão. Estava eufórico:
- Dona Odette me acompanhe, por favor!
- Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu! No outro dia, eu lhe disse que o Doutor me pediu para cuidar de uma planta muito especial. Ele me fez mil recomendações. Não lhe disse é que ela veio de outro estado, país... e ele queria que fosse reproduzida. Ficamos, os dois, observando como ela se comportava. Ficou muito triste quando percebeu que alguma coisa ruim estava acontecendo e resolveu conseguir outra muda e abandonar a coitadinha! A senhora sabe como eu fico ˜arrasado˜ quando isso acontece...
Minha mãe tentou consolá-lo:
- “Seu” Francisco o senhor é tão dedicado. Não fique triste porque, com certeza, ele sabe que não há ninguém melhor neste trabalho. O senhor é especial, mesmo. Vai ver a plantinha já chegou doente.
- Pois, num foi o que aconteceu? Eu levei a coitadinha lá pros fundo. Lá... onde eu cuido das fraquinhas, das que sofreram com alguma doença ou ataque de “largartas”, pulgões... a senhora sabe, né?
 - Um “hospitalzinho de plantas”?
- Isso mesmo! Eu fiz um cantinho só pra isso. “Eles” nem sabem. Eu quero que a senhora e a menina venham ver uma coisa.
Seguimos.
Havia uma construção rústica de bambu coberta de palha de coqueiros. Estava abrigada do sol, à sombra de um imenso ingazeiro. Não havia porta. Uma esteira era enrolada e amarrada acima das nossas cabeças e, dentro desta “enfermaria”, em “leitos” separados e organizados, as plantas eram acomodadas.  De acordo com a enfermidade ou exigências do tratamento eram agrupadas em estantes grosseiras.
- Ah! Seu Chiquinho! Isto aqui é muito lindo!
Lindo? Olhei pra minha mãe intrigada! Seu rosto estava iluminado! Eu conhecia bem aquela expressão. Era a mesma de quando aprovava alguma coisa boa que eu fazia.
Seu Chiquinho estava todo bobo!
- Gostou menina? Olha aqui neste cantinho!Sabe como se chama? Antúrio! É a tal planta que o diretor deu “perdida”! Vou fazer uma surpresa pra ele!
- Nossa! Seu Chiquinho, eu não conhecia! Antúrio!
- Tá vendo a flor dela? Olha que cor de rosa lindo!
- Parece um coração!
- Verdade, filha! É um coração!
- Eu fiz três mudas, dona Odette!
- Nossa! O Diretor vai ficar surpreso!
- Se vai! Vou deixar uma aqui pra fazer mais. Esta é dele. E esta é sua, se a senhora quiser!
- Seu Chiquinho não faz isso!
- Dona Odette o povo vem aqui pra comprar mudas pro jardim. Quando eu pergunto depois como estão as plantas, eles dizem:
- “Tão lá”!
- “Tão bonitas”?
-“Tão”.
- Às vezes eu tinha vontade de fazer outras perguntas porque tem gente que “bota planta de sombra no sol”, sabe?  Elas sentem muito, podem morrer! Mas fico quieto que é melhor! A senhora não! A senhora leva, “diz que pegou”, vem me contar as “novidades” e se preocupa quando as “coisas não vão bem”. A senhora gosta delas de verdade! Aceita, por favor! É um presente!
Vi que os olhos da minha mãe estavam molhados!
- Você vai chorar? Perguntei usando a conhecida inconveniência Infantil. Ela riu.
- Dá mesmo, filha, vontade de chorar. Seu Chiquinho, vou cuidar dela com muito carinho. Pode deixar! Muito obrigada!
Voltamos pra casa com o vasinho embalado no colo dela como se fosse uma criança!
- Você gostou tanto assim?
- Adorei, filha. Gostei demais! Vamos ter corações no jardim... Não é lindo?
Voltamos muitas vezes ao horto e durante alguns anos, até que minha mãe adoeceu.
Um dia, fui com meu pai, que também conhecia seu Chiquinho!
- Ela me pediu que lhe comunicasse que não poderá mais vir e pediu para lhe dar um abraço!
O velhinho passou aquela mão calosa de dedos nodosos sobre meus cabelos do mesmo modo que acariciava suas plantinhas. Sacudiu a cabeça. Segurou no braço de meu pai e nos olhou com piedade. Depois, sem falar, virou de costas e saiu a passos lentos pela sombra das palmeiras. Meu pai ficou imóvel por um tempo, segurando forte minha mão.
Agora você respira fundo. Eu disse que minhas histórias parecem ficção, mas não são!
Sabe Aquele Antúrio?
Durante muitos anos sobreviveu e reproduziu gerações! Seus descendentes já viveram em vasos de cerâmica, de cimento, xaxins... Já viveram no Rio de Janeiro, São Paulo, Rondônia... Quando olho suas folhas,
a elegância de suas formas, a delicadeza de suas flores que agora brotam no chão do meu jardim, fico comovida diante desses corações que palpitaram durante tantos anos,  vivos como a saudade!
  zeliadacostamt@gmail.com

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

QUEM CANTA...


         A diretora da Escola Franklin Távora se aposentou. Por ser a professora mais antiga fui designada para assumir seu lugar até que houvesse outra nomeação. Foi nesta época que tudo aconteceu!
       Quando ele chegou tinha os olhos acesos e o sorriso iluminado. Vinha de mãos dadas com Luzia que o puxava em minha direção. De repente, eu estava cercada por um bando de “tagarelas”. Falavam juntos e eu, confusa, queria saber a causa de tanta “turbulência”.
       - O que está acontecendo?
       Todos queriam explicar ao mesmo tempo.
       - Luzia! Quem é o rapazinho? É parente seu?
     Na família de Luzia, ao todo, eram onze irmãos.  Ela, sua irmã Elisa e seu irmão Nascimento eram os mais novos. Tinham, respectivamente, oito, nove e dez anos. Luzia era a mais “espevitada”, embora os outros dois também fossem bastante desinibidos.
- Professora! Este é o Luís. Eu trouxe ele aqui porque a gente quer saber o que a senhora vai fazer por ele?
- Como... fazer por ele?
- Ele nunca estudou, professora!
- Luís! Quantos anos você tem?
  Ele tentou mostrar com as mãos.
- Ele não fala! É mudo!
- Ah! Sim!
   Fiquei surpresa e sem saber o que dizer.
- Eu trouxe ele pra ver o que a senhora pode fazer. Eu disse a ele que a senhora ia ajudar ele. Ele ficou tão contente que foi correndo se arrumar!
- Luzia, ele não fala, mas ele ouve?
- Ouve!
- Tem certeza?
 Ele sinalizou com a cabeça que ouvia!
- Onde ele mora?
- “Pertim” de minha casa!
   Eu conhecia esse “pertim”... devia ser, no mínimo, três horas a pé.
- Que idade ele tem?
- Parece que é quatorze anos...
  Com a cabeça, Luís concordou.
- Luzia, com essa idade eu não posso matricular ele aqui!
      Os sorrisos se foram e olhares decepcionados agora me encaravam magoados.
        Caro leitor, não sei se você leu um outro texto meu em que falo da Esperança, intitula-se Bené.  Minha Esperança sempre escrevo com letra maiúscula.  Leu? Então, sabe que eu tenho pavor de destruir os sonhos de Esperança de alguém. Sabia que aquele “comboio” de crianças tinha vindo até mim movido pela Esperança e me senti mal, tão mal que tive vontade de chorar. Eu não tinha a menor idéia do que fazer. Luís tinha quatorze anos, mas parecia ter dezesseis. Era um rapazinho! Era alto e forte enquanto, naquele lugar, a maioria era “esmirrada” pela desnutrição. Tinha o rosto de menino e alguém... com certeza Luzia, prometera minha compaixão e o seu resgate.
    Nunca nenhuma escola o aceitou, afinal ele era mudo! Precisava de profissionais especializados e o único lugar, na época, em que poderia ser atendido era o Instituto de Surdos/Mudos que funcionava na Praia Vermelha, muito longe de Santa Cruz.
       - Luzia! Leva ele pra tomar o leite. Deixa ele lá e volta aqui pra falar comigo!
       Ela saiu exultante, o grupo os acompanhou, mas ainda pude ouvi-la dizendo baixinho:
      - Viu? Não disse que ela ia ajudar você? Eu sabia!
       Senti um calafrio! Dessa vez eu estava “enrascada”! Não tinha a menor idéia do que fazer. Parecia que tinha levado um soco no estômago. Não era a primeira “peça” que Luzia me aprontava!
      Ela entrou na sala sorridente:
     - Professora! Eu sabia que a senhora ia ficar com pena dele!
     - Luzia! Presta atenção! Nem sempre eu posso ajudar...
Você tem que primeiro vir falar comigo... Você já trouxe o Luís... e se eu não puder fazer nada? Vai ser pior pra ele, não vai?
     - Eu sei que a senhora vai ajudar! Olha, professora, a história dele é muito triste! Ele tinha dois anos e falava tudo!Tudinho!
     - Se ele falava tudo, o que aconteceu? Porque ele não é surdo!
     - Sabe como foi... chovia muito, muito, muito mesmo e de repente, a casa dele “desbarrancou”. Sabe o que é desbarrancar?  Ficou todo mundo debaixo da terra! Então, morreu todo mundo: o pai, a mãe, o irmão e a avó! Só salvou ele! Aí, ele nunca mais falou! A tia é quem cuida dele. Ela não conseguiu fazer falar nunca mais. Ele ajuda ela na lavoura lá na fazenda que ela trabalha. Ele é bonzinho e o sonho dele era estudar aqui, aí eu pensei:
     - Vou levar ele pra minha professora e vou pedir a ela pra deixar estudar lá! É o sonho dele!
     - A senhora vai ajudar ele, não vai?
     - Vou!
      Eu me ouvi respondendo e nem sei de quem era aquela voz!
      Luiz ficou, durante uns quinze dias, frequentando as aulas para eu o conhecer, confiar e ganhar sua confiança. Pela primeira vez usava lápis de cor, pincel, tesourinha. Estava maravilhado! Neste ambiente eu poderia me relacionar com ele, diariamente e observá-lo. Também eu precisava me refazer e obter informações de sua tia, não só saber mais detalhes, como pedir sua permissão para levá-lo à cidade.
   Tinha ido até o Hospital Infantil Jesus, que ficava no centro do Rio e contado ao otorrinolaringologista toda a história de Luís. O médico pediu-me que o levasse até ele para exame. Levei-o preocupada, porém Luís tinha consciência de que eu nunca lhe faria mal, graças também às articulações de Luzia.
   O médico o examinou:
      - Tudo em ordem professora! A questão é emocional mesmo! Pena ter levado tanto tempo pra tratar. Ele vai precisar de ajuda psicológica!
      - Nem pensar doutor! O Posto de Saúde de Santa Cruz não tem esse profissional.
     - Assim, fica difícil!
     - Eu sei! Estou feliz por ele não ter problema orgânico que o impeça de falar. Agora vou pensar, vou pensar...
     Daí pra frente, Luís começou a frequentar a escola, de verdade.
       Não podia. Não tinha mais direito. Vencera aos quatorze anos o limite da clientela do, na época apelidado,” ensino de primeiro grau diurno”. De qual direito estamos falando?
      Num raio de cinco quilômetros não havia curso noturno. Como ele se deslocaria do interior de um matagal sozinho, uns dez quilômetros, que seria a distância a vencer até o centro de Santa Cruz a pé!
         Conversei com Nancy e combinamos iniciar um trabalho diferenciado e que foi evoluindo do desenho de animais conhecidos, que ele adorava colorir, para as respectivas vozes que ele repetia rindo. Era a mesma turma de Luzia que sorrindo o incentivava com um balanço de cabeça.
     Um dia sua professora saiu da sala de aula aos prantos:
     - Zelia!Corre lá pra ver o que está acontecendo!
     - O que foi Nancy?
     Ela quase não conseguia falar:
    - Vai lá! Vai lá!Vai lá!
     Fui. Para minha surpresa, as crianças agiam como se todos esperassem este momento:
     Sorridente e bem alto, Luís cantava!
 As palavras não soavam com clareza, a língua parecia se enrolar, os sons se agrupavam embolados e a melodia saía aos “arrancos”, mas - ele cantava!
           O mais espetacular foi sentir a cumplicidade das crianças. Ao ouvi-lo não interromperam a canção, não riram, não zombaram daquele esforço que Luís fazia e que só a persistência e o carinho de Nancy, a música e a solidariedade daquelas criaturinhas, realmente especiais, foram capazes de fazer eclodir. As crianças continuaram como se fosse a coisa mais natural, aquela voz estranha surgir de forma crua entre eles. Seus olhinhos me olhavam iluminados. 
        Estavam ali a serviço de um milagre!
 zeliadacostamt@gmail.com

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A MAGIA DA REALIDADE


      Ao toque da campainha, todos os alunos formavam para cantar o Hino Nacional e ver hastear a Bandeira Brasileira!
       Entre centenários ingazeiros que manchavam de sombras sua fachada poderosa, em meio a um bosque quase irreal, erguia-se a construção que na época era chamada “Pavilhão”. Nele havia um anfiteatro com um imenso palco. Um grande espaço ocupado por duas quadras de esporte. Ali se jogava vôlei ou basquete. Havia arquibancadas de cimento vermelho tendo a base em tacos de madeira. Sob as arquibancadas, de um lado estava o Gabinete Dentário e do outro o Consultório Médico. A primeira vacina contra a varíola, em mim, foi aplicada lá! O Pavilhão era aberto à comunidade e outras escolas também o utilizavam nos finais de semana.  O que me dei conta, muitos anos depois, foi do avançado plano arquitetônico que distribuía pelo espaço natural, prédios destinados ao trabalho de Educação, de forma harmoniosa, integrada aos objetivos ambiciosos de quem, como um visionário, transformou o sonho na realidade que, tenho certeza, você terá dificuldade de crer. Senão vejamos:
 - no mesmo bosque, distante cerca de quatrocentos metros à direita, ficava a Oficina de Arte, um prédio emoldurado pelos arcos que limitavam a espaçosa varanda. Lá, se aprendia desde o fino bordado e suas tramas até trabalhos em metal, carpintaria, olaria, etc. Todo tipo de artesanato. Próximo, se destacava a torre bem alta, vazada, aparentemente frágil, mas que sustentava sem esforço, um imenso reservatório de água.
  Distando do Pavilhão uns bons duzentos metros, estava o imenso Refeitório. Era o domínio de dona Elza, a chefe da cozinha, uma crioula alta de imensos busto e sorriso. Especialista em nos persuadir a comer. O café farto era servido a nossa chegada. O almoço às onze horas. Ao término, as professoras nos solicitavam que, de braços cruzados sobre a mesa, “pousássemos” a cabeça sobre eles. É incrível, mas lembro perfeitamente de elas usarem o verbo pousar!  Ficávamos assim durante uns dez minutos. Muitos até dormiam, sem interrupção... A seguir, uma delas, nos contava estórias, enquanto outra ia desenrolando, ao mover a manivela, um carretel de ilustrações pertinentes às cenas narradas ou desfolhando as páginas de um álbum que ilustravam a estória. Eram os recursos visuais da época.  A voz calma e melodiosa vencia as últimas resistências e não raro, o sono nos impedia de acompanhar a narrativa até o término. Afinal, acordávamos muito cedo, chegávamos às sete horas da manhã e saíamos às dezesseis horas!  Encerrada a estória, éramos livres para nos dispersar pelo bosque, recreação livre durante uns quarenta minutos quando então a campainha soava.
   Entre árvores monumentais corria um riacho raso, onde pássaros se banhavam e bebiam água. Eram muitos e entre eles as garças, elegantes e ariscas - um toque paradisíaco.
  Ligando as margens, pontes de cimento construídas imitando troncos largos de árvores atravessavam o vão do córrego e os percorríamos de braços abertos, testando o “equilíbrio”, embora também houvesse pontes rústicas, delicadas e seguras de madeira.
    Ao lado deste bosque, uma praça exibia um “Coreto”. Era quase uma continuidade da mesma paisagem e ele era construído de ferro, imitando galhos entrelaçados de árvores. Ali, nos finais de semanas, algumas bandas do interior do Rio de Janeiro se apresentavam.
 Salas de aula ocupavam espaços ao ar livre, cercados por “fícus”, daqueles cuja folhinha se enrola e assobia. Ah! Nunca mais vi ninguém fazer isso! Provavelmente, você nunca tenha visto e nem ouvido. Não importa! O que interessa é dizer que eram podados de forma a criar uma cerca viva que limitava os ambientes. Havia salas circulares, quadradas, retangulares... Vez por outra, um pássaro deixava cair um cocozinho sobre um caderno, um livro ou em nós e, eu me lembro, ficávamos doidos pra dar um “peteleco” neles, pra cima de alguém. Pura molecagem
        Quando o tempo “ameaçava” com vento ou chuvas, íamos para o Pavilhão onde as aulas transcorriam normalmente. O mobiliário externo era retirado e guardado.
      Uma elevação de cerca de três metros acima do solo foi construída e sobre ela, num patamar de mármore foi criado em “madeira de lei”, um prédio sóbrio como um palácio. Ele exibia seu salão quadrado com quatro enormes portas que se abriam aos “Pontos Cardeais”. O acesso se dava pelas quatro amplas escadas de pedras com seus largos degraus. As paredes eram todas em vidro “bico de jaca”, emoldurados em madeira num quadriculado pequeno e elegante que lhe dava suntuosidade! Funcionavam em seu interior o Gabinete da Diretora, um pequeno Museu de História Natural e a Biblioteca. Tudo lindo e inesquecível! O acesso aos alunos era livre e inquestionável, não fora a Diretora alguém cuja sensibilidade e preparo ainda não foram superados!
     Alzira Bittencourt – nunca mais conheci alguém com tanta majestade – era a Diretora! Carismática, culta, meiga e forte era ouvida com atenção e nos transmitia o sentimento de orgulho, compromisso e vaidade por sermos parte de um projeto de grandeza. Afinal, ali estava implantado, sem que se soubesse “um campus”, construído para atender o Curso Primário (primeiro apelido que conheci do hoje vulgo “ensino fundamental”). “Ela criou dois clubes cívicos: o “Brasileiro” cujo uniforme era o mesmo azul marinho e branco que usávamos e o “Panamericano” todo branco”. É lindo”, eu pensava. Os clubes eram responsáveis pela organização das comemorações das datas importantes  e por eventos que nos interessavam criar. Os alunos escolhiam o “clube” de sua preferência, se cadastravam e participavam ativamente. No início do ano letivo era elaborada uma seleção de temas e um programa de atividades, relacionado. A organização de exposições, peças de teatro, textos literários, dramatizações,  composições musicais, saraus,etc., eram discutidos nos grupos de trabalho. Professores acompanhavam, enfatizavam pontos importantes,  sugeriam aspectos a serem abordados, nos dispunham a bibliografia do assunto a ser desenvolvido, corrigiam e se divertiam com os caminhos que a criatividade infantil tomava para surpresa de quase todos. Era um trabalho em grupo com rara dinâmica! O termo “projeto” não era popular como hoje, nem tão desgastado. O trabalho envolvente contaminava até as famílias e, dependendo da abrangência muitos pais eram convidados a contribuir com sua experiência enriquecendo o tema ou na construção de cenários, confecção de roupas, etc.  Quando da apresentação interna, votávamos nas opções que selecionadas eram consideradas vencedoras. Discursos, dramatizações, textos, danças e outras quaisquer propostas disputavam e eram apresentadas no grande palco do Pavilhão, às vezes, só para alunos e mestres, outras, para comunidade e nossas famílias.
     Eu era do Panamericano! Respeitávamos um cronograma de reuniões e de apresentação de propostas, sob a orientação de profissionais competentes das diversas áreas que convidados, nos ajudavam a dar visibilidade e a concretizar nossas idéias. Descartados os absurdos, levávamos as propostas ao conhecimento da Direção e ao escrutínio. Depois de escolhida, a participação era integral.
    As aulas de “Canto Orfeônico” alimentavam o nosso Coral com o repertório indispensável!
  Às quatorze horas era servido o leite com “ovomaltine” e biscoitos.
    Pode acreditar! Eu fui aluna da Escola Joaquim Távora! Minha primeira professora - dona Eumaia – baixinha, de cabelos louros encaracolados parecia um bichinho ligeiro, num tempo sem grades e no qual nunca ouvi falar em disciplina. Como fui alfabetizada por minha mãe, dona Eumaia me pedia para ajudar a estudar com outras crianças as “leituras” da “Cartilha”. Isso era comum lá.
- Com parceria e generosidade todos aprendem, dizia dona Alzira!
   Tínhamos aulas de Ginástica e na Recreação Dirigida, além de jogos, ensaiávamos música e danças folclóricas que eram exibidas pelos “clubes” nas datas festivas.
    Sim! Havia aulas normais e o programa estabelecido pelo governo era vencido sem “traumas”, até porque ele se “reduzia” diante das necessidades de outras intervenções que aceleravam, naturalmente, o processo ensino/aprendizagem.
   Havia visita de grupos estrangeiros e nós, apesar de crianças, nos sentíamos honrados porque percebíamos a surpresa de que eram tomados e a felicidade estampada no rosto de dona Alzira!
   Acredite! A Escola Joaquim Távora era uma Escola Pública!
 Quando formada no Magistério tive que escolher uma escola para iniciar minha carreira... Pasmem...
 A primeira escola em que trabalhei como profissional do magistério se chamava:
- Escola Franklin Távora!  
Ainda existe e fica em Santa Cruz, na época, zona rural do Rio de Janeiro!
 E aí? Você vai começar a acreditar nas minhas histórias?  Você precisa! Sei que minhas histórias parecem ficção.
E virão muitas por aí!
 Eu estou lhe apresentando A Magia da Realidade e ela está acontecendo agora – com você – preste atenção na sua vida!
É a sua Mágica História!
zeliadacostamt@gmail.com

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

MENSAGEM


            Às vezes, sou tomada por um sentimento de dolorosa impotência!
            Dedico a todos, este desabafo!
            Diante das queimadas criminosas que devoram nossas florestas para alimentar a ganância, a ignorância ou provocadas pelo desleixo e, frente à enormidade do caos instalado, quero que todos se sintam lembrados e registrados. Desde aqueles que queimam lixo junto às matas, arriscando promover incêndios, incluindo os que jogam cigarros acesos pelas janelas dos veículos nas estradas, provocando queimadas e acidentes causados pela fumaça e labaredas nas matas vicinais. Não quero ser injusta esquecendo-me de inserir  a fina “flor da malandragem”, o nosso corrupto poder político, maniqueísta, absurdamente incapaz e irresponsável. Ele ajusta a lei na medida exata que serve a escusos interesses e não nos revoltamos porque afinal... escolhido por nós...é  nossa mais fiel imagem!Será?
             Também dedico aos que ordenam incendiar as florestas para estender as supostas áreas de plantio e pastagens. Na verdade, destroem para garantir posse e explorar, num futuro bem próximo, lucro imobiliário.
            Há também aqueles que em nome da produção de alimentos abandonam suas terras que, por exigirem mais Investimentos e tempo, são relegadas, já arrasadas, e partem para a devastação da floresta virgem, cujas áreas inexploradas e indefesas garantem  liquidez.
              Os incendiários aguardam a escassez de chuvas para o maior sucesso do seu projeto inclemente!  Nenhum deles se importa com as futuras gerações e nem com a preservação da  frágil Natureza. Brincam com fogo, mas queimam até Reservas Biológicas atendendo à incontida ambição de enriquecimento fácil. Estão, muitas vezes, a serviço de quem precisa de espaço para grandes investimentos e não se importam com a desolação instaurada.
        Tanta inconsciência condena a Vida à extinção!
   Com as áreas calcinadas, não haverá mais proteção para as nascentes dos rios. Cinzas e fumaças somadas aos adubos químicos e agrotóxicos pulverizados em escalas “nunca antes vistas neste país”,  condensados numa alquimia assassina, envenenando o ar , o subsolo e os alimentos – tudo se espelhará nas mazelas e nas deformações que a nova humanidade exibirá!
    Logo, logo seremos um deserto! Como a ignorância é vaidosa...  nos orgulharemos de ser, talvez, o maior de todos!
    A fome e a sede determinarão as guerras!
   Outras populações, classificadas como selvagens, alguns milhões deles, habitaram este mesmo espaço territorial. Tudo que resistiu até hoje foi herança preservada por esses povos.
   Não fomos competentes para administrar seu incalculável tesouro!
     Quanto aos animais e plantas...estes serão lembrados em fotos, vídeos e filmes antigos, do tempo em que gente como eu, ainda tinha Esperança e suplicava!
  zeliadacostamt@gmail.com

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

BOM APETITE!



                          
         Ali estava.
         Diante de meus olhos... a fome! 
         Em sua tradução máxima, ela se exibia de três modos, impressos pela magia das lentes de uma câmera:
- na sua forma mais ostensiva e degradante, uma visão      dolorosamente  trágica.
- na sua expressão natural de garantia da sobrevivência
- no desejo compulsivo do artista de registrar a cena, consagrando sua trajetória profissional pelo oportunismo, sensibilidade  e pela imagem espetacular que determinaria o custo  da sua sanidade emocional.
     A fome é de todos os nossos instintos o mais perverso ou amoral. E ali, naquela foto, ela se revela com a sua naturalidade inclemente.
    A criança, sob um sol impiedoso, idade indefinida, nua, sentada sobre o chão duro, árido, tem no rosto transmudado, a dolorosa cara do abandono, da solidão, do infortúnio. No corpo mutilado pela fome e esculpido pela miséria, a degradação de um cadáver.
   Os olhos sem luz, secos.
   O horror, por medonho, não exibe gestos.
          Um pouco afastado, paciente, aguardando a refeição que ali estava posta, a ave de rapina - um urubu!
      O urubu também tinha fome, mas sabia que estava diante da refeição e esperava. Seria por piedade, por respeito ao filhote humano ali exposto... ou pela certeza de que logo teria sua fome saciada,  o que o mantinha a certa distância?
       Era para ser uma cena comum, corriqueira. Deve acontecer aos milhares em terras d’África! Esta África rica, exuberante em sua fauna, em sua flora, em sua riqueza mineral, mas que é assediada e vilipendiada por tempos imemoriais, graças à ganância e à ambição ao poder.
      Desta vez, porém, a sensibilidade de um fotógrafo, a sua fome pelo registro, a sua fome pela verdade, pela vontade incontida de responsabilizar a nossa alienação, eternizou a cena dolorosa que agride nossos sentidos.
      A fome! A fome está ali, lá, aqui!
      A fome degenera, exalta, deprime! Ela pode ser mórbida como a de um bandido ou insaciável como a do fotógrafo!
     Você! Você tem fome de quê?
     A propósito... você já comeu hoje?