quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

VEM COMIGO !


                             
                                  VEM COMIGO!

Existem experiências na vida que fogem a qualquer  prognóstico que se possa fazer da realidade. São, em verdade, as fantásticas possibilidades de você perceber quando o inacreditável se avizinha. Não é preciso “viver” guerras alheias para ser parte de um cenário de dolorosa crueza.
Digo-lhe isto, agora, porque fui arremetida a um momento, não tão longínquo, mas de certa forma distante, na velocidade que só a memória é capaz de imprimir.
Tudo porque acabei de ver na televisão um trem superlotado como nos velhos tempos!
Durante alguns anos viajei nos trens da Central do Brasil! Era a única forma útil, em todos os sentidos, capaz de nos fazer chegar à Escola Franklin Távora localizada em Santa Cruz!
Não sei hoje como está a Central do Brasil do Rio de Janeiro. Naquela época, o majestoso edifício abrigava um pátio como se fora grande palácio. Era um imenso vão interno cujo teto, para ser visto, nos obrigava a pender a cabeça para atrás!
Havia uma série de guichês inúteis distribuídos em linha. Em funcionamento era sempre só um. Ele atendia passageiros dos “trens paradores” que como o nome diz, eram composições que paravam em todas as estações do longo percurso e, também,  aqueles usuários que iam direto ao fim da “linha”, no caso Santa Cruz e cuja única pausa era feita na estação intermediária,  Engenho de Dentro. Era o chamado “trem direto”!
Não preciso descrever o tumulto e o desespero na fila para a compra das passagens e o humor do pobre funcionário enlouquecido no desafio de atender com rapidez e eficiência a urgência que se impunha.
Nosso trem partia às 6:05 horas. Era um tempo em que carro não era uma condução popular como agora.
Pois bem, estamos na estação aguardando o trem! Sempre um momento de grande apreensão porque as pessoas  se aglomeravam  na plataforma, ansiosas por “ter a sorte” de encontrar uma porta quebrada que lhes permitissem entrar e sentar logo, sem precisar acotovelar para conseguir um lugar num desconfortável banco de vagão.
- Arre! Sentei!
Muito bem! Vou chegar um pouquinho para o lado, assim, você ganha uma “beirinha”. Se você tivesse fechado os olhos e empurrado quem estava na sua frente... já estaria bem, como eu! Deixa pra lá! Leva um tempo, mas você aprende! É um gradativo processo de embrutecimento coletivo!
O “maquinista” faz soar um apito forte e dá uma sacudida  na “composição”. É um “tranco de arrumação”. O trem está “lotado”. Fechadas as portas... Podemos partir!
Invariavelmente, um bêbado se faz presente.
Ele desfila fétido e infeliz, com suas mãos imundas e unhas negras. Estende-as, ameaçadoramente, à espera de algum dinheiro. Não sendo atendido, dispara a saraivada de imprecações e segue escarrando uma grossa secreção no piso. Agora, outro mendigo arrasta as pernas inúteis pelo chão, deixando em seu rastro um desenho nojento, legado do grosso escarro, ainda úmido. A eles, segue o cego conduzido por uma criança. Ele sacode uma lata com moedas que tilintam. Para e suplica em versos candentes a piedade de todos. É a procissão dos desvalidos! Um horror cotidiano! Esta sensação angustiante  é logo superada pela entonação, desafinada e estridente do homem que, cantando, apregoa a revista de “modinhas”  com as letras das músicas populares que deverão seduzir os passageiros. Entretanto, a voz do baleiro o supera e ele, aborrecido, passa a outro vagão... Não, sem antes, lançar um olhar de desdém ao menino que grita suas balas carameladas de coco. Rindo, o jovem debochado oferece seu doce produto ao jornaleiro que alardeia mais um crime cometido e divulgado pelo jornal “A Luta” especializado em  fazer da desgraça, a razão maior de sua sobrevivência – “um jornal que se torcer sai sangue” -  era a piada irônica,  ouvida a seu respeito na época. “O Dia” era o jornal rival e também dedicado as mesmas insanas manchetes. Ambos exibiam nas capas fotos chocantes das vítimas de crimes ou acidentes que eram quase “esfregadas” nas caras (rostos?) dos passageiros. O “Diário de Notícias”, “Última Hora”, o róseo “Jornal dos Esportes”, “O Globo”, "Correio da Manhã"  e o “Jornal do Brasil” também encontravam leitores ávidos. Um “beato” seguia o jornaleiro para exaltar as más ações e ameaçar, com os horrores do inferno os passageiros, como se fossem eles, os autores das sandices divulgadas.
Ufa! Chegamos à estação do Engenho de Dentro!
 O maquinista faz, neste local, uma pausa obrigatória para  esperar que seja liberada a única linha que daqui para frente será usada. Aguardemos, então, o trem que vem para que possamos entrar no desvio.  
Aqui “descem” muitos passageiros, mas “sobem” o dobro! Pena que a lavadeira que despejou sua trouxa de roupas sujas no meu colo, sem a minha aquiescência, more mais distante. Pelo visto, terei que carregar este peso por um bom tempo.
Estou com o pescoço cansado porque tenho que manter a cabeça para a direita. Ficando de frente roço meu rosto na barriga da lavadeira que tenta escapar do assédio de um homem. À minha esquerda está postado aquele galã que sempre aparece. É como uma “entidade”:  traz um sorriso que acredita irresistível, cerra os olhos e espreme os lábios para registro do seu poder de sedução! É hilário!
Caí na bobagem, um dia, de rir dele e ele não entendeu! Pensou que estava agradando! Ficou difícil!
 Não tem jeito! Gordo ou magro, moço ou velho, mas sempre ridículos, eles, os imbecis e suas anomalias se infiltram entre os seres normais e surgem, como se brotassem... Tal ervas daninhas.
A viagem prossegue! Embalado pelo ruído ritmado, o cansaço começa a vencer as resistências e muitos cochilam.
Súbito, um barulho do ranger das rodas de aço nos trilhos e um solavanco brutal! O trem freou!
Acidente? Descarrilou? Pânico geral!
Será outro comboio na mesma linha?
Medo!
Fora, um homem em choque vem a passos lentos carregando duas pernas debaixo dos braços, ambas amputadas pelo “trem parador” que passara por nós, na outra linha, minutos antes. Um rapaz, “pingente”, havia caído e agora, ainda vivo e lúcido, banhado em sangue, tem o tronco carregado num “carrinho de mão”. Visão grotesca!
Ele implora pela mãe!
 O maquinista avisa alguém que vamos ficar estacionados ali por um tempo. A notícia logo se espalha!
São 7:10!
Nossas crianças nos aguardam às 7:30. Caminham em média quatro quilômetros para assistir nossas aulas. Somos quatro amigas. Estudamos nas mesmas escolas. oramos na Zona Sul e somos professoras na mesma escola da Zona Rural, a Franklin Távora em Santa Cruz.  Não sabemos mais a que horas chegaremos!
- Se você não quiser esperar... pode “descer” aqui!