ÁGUA MOLE... EM PEDRA DURA...
- Tava doida pra senhora chegar!
Num dá mais pra bebê, nem cuzinhá com essa água daqui! Vige!
Oia só! A água tá embaçada e fedendo! Num dá nem pra moiá a horta! Nem sei si vai servi pra lavá os banheiro! Tá uma fedentina...
- Que aconteceu, dona Maria?
- Sei lá?! Sei não! Só sei que num dá mais!... Tou disisperada!
Eu fui então, até o bebedouro das crianças e o copo que enchi estava turvo, com forte odor putrefato!
- Será que tem algum bicho morto no poço?
- Não! Num tem! Já pidi ao Juju pra espiá... Ele jogô a caçamba várias vez...E nada... mas a "murrinha" no poço é forti!Que será?
(Juju era seu filho e funcionário da mesma escola)
- Bem, dona Maria, a solução é comunicar ao Distrito Educacional e ver se a gente consegue um pouco de água aqui, nesta granja vizinha, só pra fazer a merenda e as crianças beberem... Certamente, eles não negarão!É só até a gente resolver!É uma emergência!
- Gente do céu... Tou preocupada... Quanto tempo vai durar esta afrição?
- Calma, dona Maria! Já, já vamos resolver isso!
No mesmo dia, fui ao Distrito Educacional. órgão responsável pelas Escolas da região de Sepetiba e Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Sepetiba é região litorânea, enquanto Santa Cruz, a zona rural.
Narrei o ocorrido e fui informada pelo Chefe de Distrito que a gravidade da situação impunha ser comunicada por Ofício dirigido a ele, que o encaminharia ao Administrador Regional, uma espécie de "prefeitinho", o chefe político da Região. Nesta época, o Rio de Janeiro era dividido em Administrações Regionais, um arremedo de "pequenas prefeituras".
Aguardei por três dias a solução. Nossa situação era dramática.A água cedida pela Granja do Sagrado Coração era trazida em baldes e panelas numa "via crucis" sob o sol ardente de um verão à temperatura acima de 40 graus à sombra. Para aliviar o martírio de Juju, o filho da Dona Maria que era nosso servente, Seu Inacinho, o taxista que o estado alugava para conduzir as professoras da Estação Ferroviária de Santa Cruz até a escola, penalizado com a dramaticidade da situação, gratuitamente, reservou um horário de seu dia de trabalho para nos atender e conduzia, generoso o dedicado Juju, nesta dolorosa empreitada, um triste arremedo da "via crucis" no transporte de baldes e tonéis e panelas contendo o precioso líquido.
Fiz outro ofício, mais outro, outro mais... Nada! Resolvi, então mandar um por dia. Foi um escândalo!Enfim, eu os atingi! Fui chamada ao Distrito Educacional!
- Professora, a senhora não pode mandar um ofício por dia! A senhora devia saber que deve aguardar o andamento do processo!
Embora ele estivesse irritado, tentava falar com calma e num tom conciliador, deixando claro minha incompetência em lidar com procedimentos burocráticos legais:
- Veja! A senhora manda o ofício e nós encaminhamos à Administração Regional. Isso já foi feito!
- E aí, professor Darcy?... Quanto tempo o senhor acredita que a solução demora?
- Bem, agora temos que aguardar o memorando do Administrador Regional informando que providências cabem!
- Ah! Enquanto isso, eu escravizo o coitado do faxineiro... Fico devendo favor ao motorista de táxi e, humildemente, rogo aos donos da Granja que me cedem, por caridade, a água que eles pagam ao governo... É isso? Ou então, eu finjo que está tudo bem e contamino as crianças, sei lá com o quê?...É isso?....Está bem, assim?
Foi uma cena caótica! Eu apoplética! Ele em choque!
- Professora, serviço público funciona assim...
Aguarde, por favor, as providências. Vou ligar hoje para o administrador e ver "em que pé estão as coisas".
- Tudo bem. Não vou mandar mais ofício... Usei o "ofício" porque conheço a inutilidade dos trâmites legais. Queria incomodar a inércia oficial! Queria provar que a urgência, não tem tempo pra esperar. Obrigada!
Dia seguinte, de repente, ouvi um tumulto e vejo Juju gritando à beira do poço:
- Donaaaaa Zeliaaaaa! Corre aqui!!!
Corri para o quintal. Junto à beira do poço, Juju sustinha numa vareta.......uma cobra que acabara de ser, por ele, recolhida nas águas do poço.
- Veio no balde!
- Coitadinha!... Exclamei, penalizada!
- Coitadinhos de nós! Quase que bebemos água daí! Ela está morta agora, mas parecia meio mole quando a "pesquei"... Pelo visto, essa água fez a cobra adoecer... Essa água fede! Está podre!Como é que pode?
- Juju, por favor, põe ela num vidro com esta água daí! Vou até a Administração... Vou mostrar isso a eles...Quem sabe, não aceleram a solução...
Antes de entrar no prédio da Administração Regional, fui interrompida por um funcionário que, muito simpático. me perguntou a razão da visita:
- Olha, pra ser mais suscinta, vou lhe dizer que quero falar, pessoalmente, com o Administrador Regional. Minha escola está cheia de problemas que já foram, oficialmente informados, porém o que me trouxe aqui requer solução urgente. Dá pra ele me atender?
O rapaz demorou um pouco e pude perceber o movimento nervoso no prédio. Uma espécie de "vai e vem" aflito. Curiosa, perguntei a razão e fui esclarecida da visita do governador que viria inaugurar, dentro de alguns dias, a "remodelação" da Praça dos Jesuítas, um ponto histórico a ser preservado.
Para se livrar de minha incômoda presença fui, rapidamente, liberada ao encontro com o administrador e ele foi logo me informando:
- Estamos bastante agitados e ocupados professora. Já sei o que deseja e quero lhe informar que agora vamos receber o governador Carlos Lacerda e depois trataremos do "seu assunto".
- Ah! Que bom! O senhor já sabe do "meu" assunto e eu fiquei sabendo agora do "seu"... O governador vem aqui, né? Está vendo esse vidro? Esse copo é seu? Com licença!Quero que o senhor "prove"essa água! Esta água é do poço da minha escola e olha aqui a garrafa, tem até uma cobrinha dentro. Foi "colhida"no poço pelo servente:
- Bebe... Ah! bebe vai... É uma rara iguaria que devo servir às crianças!
- A senhora está brincando...
-Ué? Se é bom pra eles...
Ele estava meio atordoado e aproveitei:
- O Senhor disse que o governador vem aí semana que vem... A estrada passa perto da minha escola.Vou recebê-lo com as crianças e vamos interromper o caminho... A gente leva a Bandeira... Ele vai achar que é homenagem...Vou levar a garrafinha e um copo...
Ele estava pasmo!
- Sinto ser uma ideia brilhante! Obrigada e desculpe interromper seu trabalho!
Saí intempestivamente... Eu sabia que o tinha atingido e que ele estava surpreso e chocado! Toimmmm!Agora doía nele! Era quase uma forra pelo pouco caso...
Dia seguinte, quando cheguei à escola, levei um susto com a gigantesca máquina perfuradora "ferindo" a terra na construção de um poço!
As aulas foram interrompidas!
Pedreiros corrigindo o chão do refeitório que fora esburacado há tempos e pintores me indagando, se queria todas as salas de aula com a mesma tonalidade ou preferia que cada uma delas tivesse a cor que combinasse com a das carteiras velhas que nós, as professoras, havíamos pintado, durante as férias, para dar mais alegria aos ambientes e surpreender as crianças no retorno às aulas, com a novidade!... Bem, os móveis ficaram lindos, mas essa despesa para espanto de todos, já fora por nós assumida, apesar dos parcos salários!
Agora, a escola ganhou sala azul celeste, verde- limão, um suave cor de rosa e um doce laranja.
O prédio ficou lindo!
A escola ficou nova! Uma festa!
Linda e rapidamente corrigidos os detalhes negativos!
Como esperávamos, as crianças enlouqueceram!
O engenheiro responsável pelo evento me informou que as raízes da Mangueira, árvore frondosa que "sombreava" o quintal, tinham criado um canal de comunicação subterrâneo, com suas raízes, entre o esgoto dos banheiros e o poço. Por isso a água fedia! Estava altamente contaminada!
Que bom! Agora, com o problema detectado, o mal estava sanado e definitivamente resolvido com a construção do poço artesiano.
Um POÇO ARTESIANO!
Água limpa e permanente!
Espera! Não sei de que espécie era a Cobra responsável pelo milagre?!!!...
Que tal lhe dar um nome? Ela merece este carinho, não concorda?
Sabia! Zelia, né?
Zelia da Costa/Nova Lima/MG//09/10/2020/16:20