quarta-feira, 30 de novembro de 2011

QUAL A COR DA INCOMPETÊNCIA?



                        
O que será que leva alguém ao torpor, quando submetido à humilhação?
         Concursos públicos e vestibulares podem ser usados para compensar lacunas históricas, sem ferir a ética, sem enodoar o caráter dos beneficiados, sem estimular a dúvida e o preconceito?
         Existe regozijo na humilhação?
         Por que uma pessoa é levada a crer que pode usufruir de uma  situação anômala, deprimente, um direito que moral e legalmente  é de todos? Como se sentir integrado ao meio, se este privilégio foi concedido com desdém e por menosprezo? Uma solução que abriga os inconfessáveis interesses de quem se habituou a galgar degraus pisando nas cabeças, pouco sensíveis ou menos lustradas.
Há que pensar!
Serão os negros e os índios merecedores de tanto desrespeito?
         - “É dívida com a raça negra que agora se tenta expiar!”
         Mentira!
         - “Agregaram os índios para fazer justiça!”
         Que justiça?
         Há tribos sendo dizimadas pelo descaso, pelo isolamento, pela falta de recursos. Muitos estão morrendo de fome, disenteria, tuberculosos ou vitimados por outras doenças que  também poderiam ser evitadas com o sistemático trabalho de prevenção. Muitos, perdendo as raízes, se suicidam ou se entregam ao vício do tóxico e do álcool. A prostituição está vinculada à miséria.
As maiores vítimas são as crianças que não resistem ao sacrifício que é sobreviver ao desamparo. Inúmeras culturas vão se perdendo por faltar estímulos à preservação.
        A quem os vis gestores querem enganar?
Os negros foram escravos até 13 de maio de 1888. Libertos, deixados à mercê da sorte. Passaram fome, adoeceram, morreram. Penaram penas. Aos
poucos e a custa de muito sofrimento foram se desvencilhando das amarras.
Com nobreza e determinação, homens de estirpe venceram, na época, o forte preconceito e provaram com competência, que criatividade, espírito  científico,  etc..., são aptidões inerentes a todo ser humano, independente de raça, credo ou posição social. Jornalistas, romancistas, advogados, médicos, poetas, comerciantes, cientistas foram negros cujas inteligências brilhantes, alto índice de criatividade e visão venceram o pavoroso racismo da época.
Os brancos se miscigenaram. Os índios se miscigenaram. Os negros se miscigenaram. A miscigenação mudou a cor, o corpo, o humor da população. A miscigenação mudou o andar, criou ritmos, deu novas formas à arquitetura torneando seus traços, coloriu a pintura com a dinâmica dos novos matizes. A Arte Brasileira ganhou personalidade.
E o preconceito?
         O preconceito sempre haverá. Contra os negros e entre os negros.
         Contra os brancos e entre os brancos.
         Contra os índios e entre os índios.
         Contra os deficientes e entre eles.
         De pobre contra rico.
         De rico contra pobre.
         Porque o preconceito pertence à informação mal assimilada, à ignorância e ao lado sombrio da alma. Ele se aglutina à inveja, ao ciúme, à ambição. É o lado nocivo da espécie humana. A verdade é que a Educação  pode e deve cerceá-lo, tornando as qualidades  de seus objetivos, alvo de todos os seus esforços.
A Educação é para todos como o alimento.
É possível ser criada quota de comida que privilegie um percentual de famintos em detrimento de outros, tanto ou mais necessitados?
Sim! É possível!
         A quota racial é uma excrescência!
         Parece que os quotistas não entenderam a situação de inferioridade a que foram expostos.
A lisura dos concursos públicos e vestibulares é maculada para servir aos “incapazes”: negros e índios. Acaso, eles não têm condições de competir em igualdade?
Esta é a ofensa!
         Por favor, reajam! Não se submetam a tanta humilhação!  Não se ajoelhem!
        As crianças e adolescentes carentes recebem uma educação que não alimenta. Integram a solução covarde e inapelável - mesmo que se esforcem terão que ceder a vez para um negro ou um índio, não por mérito, por solução política.
         As famílias que se empenharam para dar a seus filhos condições de frequentar uma escola particular, com sacrifício debulhado durante anos, buscando  melhor qualidade de ensino, assistem pasmas à solução iníqua.
         Qualquer concurso público submete o “negro coitado” e o “índio vilipendiado” a esta deprimente condição.
        É claro que haverão aqueles cuja dignidade fala mais alto, mas sempre há quem, maldosa e preconceituosamente, se referirá a ele como ”quotista”. E, ai “de um deslize”...
Em 2007, o geneticista Sérgio Pena, do laboratório Gene, analisou com sua equipe o DNA de alguns negros famosos. A miscigenação foi constatada em todos, com maior ou menor percentagem. Houve, porém, um fato muito curioso. Um dos analisados foi o cantor popular “Neguinho,” da Escola de Samba Beija Flor. Seu apelido já dispensa qualquer comentário – é “negro retinto”. Pois, não é que ele tem em seu DNA 62% de sangue europeu?
Daiane, a nossa campeã de ginástica artística no solo tem no seu DNA, 39,7% de ancestralidade africana, 40,8% européia e 19,6% ameríndia.
Se o teste analisasse alguns dos “nossos brancos” é certo haveria também surpresas.
Ao invés de quota, valorizem a auto estima do povo com uma boa qualidade de Educação! Privilegiem a excelência, cultivada no ambiente de ensino! Dêem ao povo condições de discernimento. Permitam que ele possa competir em condições de igualdade. Não manipulem a interpretação da lei:
-Todos são iguais perante a lei -
Quando um País pratica tamanha incongruência é porque os seus administradores reconhecem a “porcaria de educação pública que estão oferecendo.” O nível dos gestores é tão ruim que procuram a solução mais fácil, sem perceber que chancelam a própria incompetência.
Basta desta ignóbil brincadeira de “faz de conta” - porque ninguém riu!
O que mais é preciso pra saber qual a cor deste Povo?   
O Brasileiro é Verde, Amarelo, Azul e Branco!
zeliadacostamt@gmail.com

    




     

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

OS OLHOS DA TERRA


                              
Em princípio, é necessário esclarecer porque era chamado Terceiro. Tudo começou em Rondônia. Morávamos lá. Na casa havia um jardim enorme, parecia uma praça. Tínhamos alguns cães que só serão citados porque um dia vi atravessar o pátio, sem nenhum constrangimento, um sapo!
        Saiu de um canteiro de flores, contornou outro e se dirigiu para os fundos da casa, onde havia a lavanderia, acomodando-se debaixo da máquina de lavar roupa.
        Percebi que os cães não lhe “causavam espécie” e que ele até convivia, com certa intimidade, naquele ambiente. As pessoas eram ignoradas por ele, até com certo desdém.
         Com o tempo, “Bob” tornou-se tão integrado à família que alguns amigos já me perguntavam pela sua saúde.
        Ao amanhecer, ele passava sob o portão de ferro da garagem e ia para rua. Para onde? Talvez para o terreno vazio da esquina onde o mato crescia. À noite retornava com a empáfia de sempre.
        Quando nos mudamos para Mato Grosso, a fim de ficarmos próximo do filho que lá residia, os cães foram conosco. Não somos o tipo de pessoas que desprezam amigos, mas Bob ficou. Os cães eram meus, há alguns anos e Bob nascera naquela região e tinha sua vida muito independente. Eu não me atreveria!
        Um dia, Marcos, o jardineiro que nos acompanhou desde Rondônia e que conhecia a história do Bob, pediu-me que fosse ao jardim ver uma novidade. Rimos muito, diante de um sapinho todo faceiro passeando entre os meus cachorros. Imediatamente dei-lhe um nome: “Segundo”!
O que mais nos deixava intrigados era que os cães não admitiam a presença de “calangos”.  Esses pobrezinhos eram perseguidos com fúria, como intrusos e, não fosse a rapidez com que se deslocavam, deslizando com incrível habilidade e o “mimetismo” de que eram dotados,  seriam fatalmente atingidos e mortos!
        Vivemos nesta cidade até que adoeci. Pensamos em voltar a morar num grande centro por medo de que eu viesse a necessitar de atendimento de urgência. Sapezal ficava muito distante de aeroporto e a estrada até Cuiabá era péssima.
        Não quis residir novamente na minha cidade natal. Eu amo o Rio de Janeiro, porém acostumei com a simpática e carinhosa saudação da gente do interior e a tranquilidade e o silêncio destas cidades. O silêncio vicia.
        Mudamo-nos para Nova Mutum! Mais próxima de Cuiabá. Tão gostosa quanto Sapezal! Tão quente como todas as cidades do centro-oeste de Mato Grosso, por isso, à tarde, sinto necessidade de regar um pouco o jardim para refrescar as plantas e foi assim que conheci “Terceiro” - verdinho, lustroso, com pequeninas manchas escuras.
Ao me ver, surpreendeu-se. Encarou-me como intrusa e, certamente, querendo me intimidar, resolveu avolumar-se.
        Informei-o que seria perda de tempo aquele “esforço”. Eu não tenho medo de sapo. Eu tenho medo de escorpião! Eu costumo conversar com todos que estão vivos: plantas,  abelhas, maribondos e até cobras, mas com o escorpião não há diálogo!
Aconselhei Terceiro a se dirigir à varanda. Lá havia aqueles “bichinhos que gostam de luz” e eles caem...
        - Se eu fosse você, eu ia pra lá... aqui, quando eu puxar a “mangueira  de água”, ela será arrastada e você vai acabar se arriscando...
        Ele me olhou com ar inteligente e confiante. Logo depois, atravessou um canteiro e deu um pulo para subir no chão da varanda.
        Desse dia em diante, quando eu estava regando o jardim, ele aparecia. Ficava um tempo por perto, eu o saudava e  “puxava uma conversa”, ele me seguia um tempo, depois desaparecia.
        De novo os cães ignoravam sua presença.
        Com o tempo descobrimos que ele também gostava de dormir na lavanderia, mas passeava livre e com grande intimidade também pelo quintal. Hoje sei que era onde ele havia nascido. Neste caso, se aplica muito bem o termo “terra natal”.
        Um dia, meu  marido chegou irritado:
        - Esses bichos “seus” são tão abusados... eu vinha pela calçada, o Terceiro estava lá, parado. Esperei ele sair. Não saiu! Eu tive que pular o sapo! Aqui a situação se inverteu!
Rimos muito!
Havia um período de tempo em que Terceiro sumia... coisa de dois, três meses. Quando retornava era uma festa, porque ele sempre fazia uma aparição inusitada. Às vezes se escondia sob a terra e deixava só os olhos de fora, camuflados naturalmente, como se a terra tivesse olhos e nos espiasse.
O tempo passou. Meus cães se foram: as duas “Pitbull” Docinho e Afrodite e os “vira-latas” Ferrugem, Sofia, Uga-Uga e o “Poodle” Flict, com seu QI diferenciado. Restou apenas Shogun, uma criatura muito especial. Como ficou solitário e triste... resolvi comprar um cão. A veterinária trouxe dois filhotes para eu escolher. Diante dos irmãos aconchegados e assustados, últimos filhotes, não resisti e fiquei com os dois. Faltou coragem para separá-los.
Rapidamente cresceram. Com seis meses, lindos e saudáveis , os dois “Rottweiller” dominavam todo o espaço.                            Quando Terceiro fez sua primeira aparição não contava com aquelas presenças incômodas. Os dois queriam brincar com ele e nós tememos pela sua segurança . Terceiro agora era um sapo adulto e sério. Ao ver a dupla de inconsequentes, ele inchava. Ficava do tamanho de um frango e eles saltavam a sua volta, latindo e batendo as patas dianteiras no chão.  Temerosos, resolvemos impedir que Terceiro fosse para o quintal retendo-o no jardim. Não sei como ele ultrapassava os obstáculos que colocávamos para bloquear sua passagem e penetrava no quintal. Foram várias as tentativas, todas frustradas.
Diante disso, meu marido achou melhor transferi-lo para o terreno vazio próximo.
Acordamos, de novo, com os latidos dos dois cães e com Terceiro no quintal, inflado, enfrentando a ameaça.
       Shogun não participava desta bagunça e até se retirava, mas Thor e Shazan adoravam a farra!
       Diante do risco iminente, porque eles estavam enormes, já com quase um ano, meu marido convenceu-me de que era melhor levar Terceiro para mais distante. Encontramos próximo, um lago pequeno e pantanoso. Um lugar bonito e quase selvagem.
 Da caixa em que o colocamos ele me olhava. Resolvi  explicar-lhe ser a questão de “vida ou morte”. Era preciso transferi-lo para um local seguro e, assim, conseguir que vivesse em paz. Estava sendo levado a um lar bonito e bom pra ele. Sabia que ele não queria ir. Ele também sabia que eu não queria que ele fosse.
        Ele olhava triste! Eu também!
        Meu marido e eu escolhemos um “ponto” e o deixamos sair. Ele saltou e ficou um momento parado, nos olhando e tentando entender o espaço. Nós nos afastamos devagar, deixando Terceiro.
Durante um tempo temi seu retorno.
       Só tenho medo de que se aproxime de algum “humano ser”, julgando amigo e que este “ser” esmague “os olhos da terra”!
       Certamente, Terceiro crê que todos nós somos iguais!
        Zelia da Costa
                           zeliadacostamt@gmail.com


       

domingo, 27 de novembro de 2011

Código Natural


Era um almoço. 
Um almoço que deveria transcorrer com a tranquilidade da refeição comum do dia de semana. Sobre a mesa, os alimentos dispostos e a família reunida e faminta.
Os pratos quentes fumegavam! O cheiro da comida exacerbava os apetites.
Súbito, surgiu uma abelha! 
Ela voava sobre as travessas fazendo desenhos no ar, rompendo a fumaça como se desafiasse o perigo.
Imediatamente, todos tentavam enxotá-la, temendo que estragasse, com sua queda, o prazer da refeição.
Meu coração “apertou”. Há entre mim e as abelhas um capítulo de amor “bem resolvido” e a minha eterna gratidão. Temi pela vida dela. Certamente, ela ia morrer!
Peguei um prato e tentei colocar sob ela, no ar. Ela pousou. Levei-a no prato a uma outra mesa onde estavam as sobremesas. Havia uma compoteira com doce de ameixa em calda. Coloquei um pouco da calda no centro do prato e fiquei esperando ela se refazer e perceber.
Tateando, ela se dirigiu ao doce e começou a “comer”.
Feliz, não me contive e com o dedo indicador tentei fazer-lhe carinho. Ela viu, ergueu as duas patinhas anteriores e levantou a cabeça. Era uma ameaça! Tentei de novo. Ela de novo as apontou...  mas recolheu. Abaixou as patinhas e a cabeça. Entendi a mensagem e fiz o carinho que queria.
Enquanto isso, filhos e marido irritados, reclamavam minha presença.
Voltei para o almoço muito feliz. Meu marido acostumado com estas minhas aventuras quis saber da abelha.
Judith está comendo também. Todos riram.
- Judith! Era só o que faltava!
Meia hora depois apareceram duas abelhas.
Reclamação geral.
         Rápida, peguei outro prato vazio. Estranhamos a rapidez com que uma das abelhas pousou. Parecia já conhecer o processo. Logo, a outra a imitou. Levei as duas ao "seu almoço” e, não sei porque, estendi o dedo sobre as cabeças delas. Só uma levantou as patinhas – a outra, tive certeza – era Judith! Ela havia informado a colméia?... Será?
          Ester, também ficou amiga.
          Daí pra frente, eu colocava o prato com calda doce e elas vinham! Eram muitas. Chegavam por volta de dez horas da manhã. Eu acarinhava  todas. Eu tinha a sensação de que havia um código de comunicação, entre elas, alertando para não me ferir. 
Ficamos amigas: eu, Judith, Sarah, Ester...
          O prato era um enorme círculo coberto de vida.
          Um amigo de meu filho, Paulinho, perguntou-me o porquê desses nomes.
          -Tenho amigos judeus muito queridos e distantes. Talvez, sem sentir, deixei falar a saudade.
             Intrigados, eles queriam saber como eu distinguia os sexos.
            - Eu não tenho essa preocupação, mas reconheço Judith porque ela me procura pela casa.
            Sei que não deveria alimentar as abelhas. Elas exercem função vital na reprodução da vida da floresta- a polinização!  Ocorre que, nesta época eu morava em Rondônia e os incendiários estavam à solta! Esta é a razão dos insetos e de todos os animais que podem, fugirem e invadirem as cidades: de abelhas às onças; de cobras aos morcegos, etc.
            Tempos depois, tive que viajar e deixei minhas amiguinhas.
            Um dia, meu filho ligou-me aflito:
- Mãe! Nossas abelhas estão sendo atacadas! Acabou o doce e eu pus mel pra elas. Acho que esse mel atraiu as outras.
- Vai ver é mel fabricado por estas. São de outra “família”. Faz assim: tira o prato. Não põe mais! Não se deve interferir na Natureza! Se elas estão em perigo... Não vale a pena insistir! As chuvas chegaram e a Floresta vai tentar se recompor.
A vida das abelhas é naturalmente curta. Pelo tempo, Judith já não mais existia.
- Elas vão ficar com raiva da gente, mãe!
- Elas vão entender o recado! 
  Você não conhece as Abelhas!
zeliadacostamt@gmail.com

sábado, 26 de novembro de 2011

A BRUXA


  
 Não é possível dissociar o sorriso largo, da figura que diante de  mim, com olhos marejados  e ansiosos, expunha a ansiedade,  a curiosidade e hoje sei, a esperança.
               - Bom dia!
               - Bom dia! Fia!
Durante cerca de oito anos esta cena se repetiu!
Dona Maria era a servente daquela escola. Funcionária pública. Analfabeta. Sua função era limpar as dependências internas e
externas  e preparar o leite em pó que era servido às crianças.
          A construção de escolas rurais fez surgir ali, nos Palmares, a Escola Franklin Távora, com quatro salas para atender aos filhos dos trabalhadores das fazendas que existiam em Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
         Talvez, o isolamento tenha contribuído para dar à dona Maria a oportunidade de trabalho. O fato estranho é que ela precisou de documentos para ingressar no funcionalismo público e me contou, sorridente, que escolheu um dia, um mês e um ano para ter nascido e foi providenciar sua Certidão de Nascimento.
       Com o documento em mãos, se apresentou para ocupar a vaga e, não havendo outros interessados, ela foi admitida.
      Baixinha, “troncuda”, vestida com um uniforme azul celeste, de padrão  xadrez, um avental muito branco, que ela mesma resolveu adotar  e um lenço branquinho, bordado, que lhe prendia os ralos cabelos trançados...Ela se assemelhava a um duende em sua misteriosa origem.  
D. Maria tinha dois filhos: um negro retinto, alto, magro, muito  forte -  o Juju; outro, um mulato claro, alto, fortíssimo, magro, físico de atleta -  o Wilson! Todos dois com mais de um metro e oitenta e, apesar da aparência, Juju tinha dezoito anos e seu irmão quinze. Pareciam  homens bem mais velhos, o que estranhei! Aliás, aquele era um mundo pronto a me surpreender!
          As salas de aula, muito espaçosas e claras, evidenciavam o baixo índice de crianças matriculadas. Eram todas franzinas. Peles           amarelecidas, mãos e pés embrutecidos, unhas encardidas, cabelos em "grumos". Exalavam um odor desagradável e inesquecível e muitas exibiam no rosto pálido, feridas causadas pela secreção verde e grossa a escorrer do nariz.
         Roupas em frangalhos. Poucas usavam chinelos nos dois pés!
         É claro que eu conhecia a miséria brasileira! Livros e filmes já me haviam inserido neste contexto até agora fascinante, porém, nenhum escritor ou cineasta foi capaz de imprimir ao texto a dramática desolação!
         O espectro era maior porque não se exibia no sertão nordestino, não!
O horror era vizinho!
        Não eram olhos infantis, risonhos ou moleques que encaravam quase me pedindo desculpas pela ousadia!  Eram olhos opacos,   descoloridos, rasos!
      O perfume da mata nas cercanias tentava suavizar a dureza do momento, mas calcou na minha memória a marca antagônica que pode ser contida no contraste, o que me valeu até hoje como sinalização de alerta, impedindo que falsas aparências ou pequenos detalhes sejam capazes de mascarar, suavizar e me confundir quanto à crua realidade.
 Embora a Natureza emprestasse seu aroma  de magia, não havia  condições para exibir seu encantamento. Ali estava o registro da miséria, do descaso, da desfaçatez.
       O curso de formação de profissionais do magistério, “ Curso Normal”, altamente conceituado, cujas vagas eram disputadas nas provas “duríssimas” - escrita e oral -  mantido pelo governo, congregando em seu corpo docente profissionais de alta competência, dedicados e determinados a fazer cumprir o “Programa” cujo conteúdo era ora irrelevante, diante da verdade amarga, exposta agora, a minha tornada "incompetência".
     Algo porém, foi capaz de vencer meu torpor: 
       - aquele sorriso -  escancarado, confiante!
 Era como se dona Maria estivesse me esperando com a certeza  de que eu, como um “messias”, finalmente chegara. Esta perspectiva de esperança, assustadora e comovente, comprometeu o meu destino.
Ela usava chinelos “de dedos” e pisava para dentro como um     papagaio. Seus passos miúdos imprimiam ao andar o movimento pendular cadenciado, ora ligeiro, ora sereno, dependendo das suas aflições.
O prédio tinha sido construído na forma de “colchete”. Em uma “perna” ficava a cozinha e atrás dela, no sentido de sua extensão, na parede contígua, as dependências da casa do zelador, ora desocupada. Na “perna” oposta havia a Sala dos Professores, a Sala da Direção, um banheiro, uma sala destinada ao almoxarifado e uma outra sala, fechada à chave, cuja guarda era mantida  "aos cuidados" da Diretora.
Um pátio de chão de cimento vermelho, muito limpo, ocupava  o espaço entre esses ambientes. Um terço dele, próximo à cozinha, era cercado por parede vazada a uns dois metros do chão, permitindo ampla ventilação. Mesinhas quadradas, dispostas em linha, sinalizavam o Refeitório.
        O Banheiro das crianças cheirava mal. Quatro privadas e um box com chuveiro. Lavado e bem e todo dia. Eu via. Cheirava muito mal!
      As Salas de Aula eram dispostas duas de cada lado, separadas por um largo corredor que  dava entrada à escola, desembocando no pátio interno.
     Entre a escola e o muro em ruínas, um espaço de terra que perdera a memória de um jardim. De resto, nem cerca, nem muro, mas escrito num azul desbotado com letras maiúsculas, a certeza de que a Escola Franklin Távora era lá!
    Radiante, dona Maria serviu um cafezinho.
- Fresquinho, fia, pode tomá!
  Tomei, num esforço para não desagradá-la!
- Muito bom, obrigada!
- Qué mais? Toma mais...
-  Não! Não...é que estou com o estômago meio ruim...
- A fia tá cum dô di estrombo? Intão vo fazê um chá!
         E foi assim que conheci a maior especialidade de dona Maria -  o domínio  das Propriedades das Plantas!
Qualquer dor ou machucado era curado com seus chás,  unguentos ou mesinhas! Era uma bruxa! Em outras eras, noutro lugar seria queimada viva!
- Fia! A merma pranta qui cura...mata! 
  Nem todas as foia da merma pranta tem o mermo efeito! 
  Chá é remédio...demais é veneno!Nem todo chão dá ervra boa!
     Nem ela, nem seus filhos, algum dia, "foram ao médico!"
     -  Ficava longe, fia! Eu tinha vregonha! E num tinha dinhero!Dispôs era coisa miúda! Fácinho de resolvê!
Não havia cólica menstrual que resistisse aos chás de dona Maria,  nem dor de cabeça, nem dor de estômago...
         Era só ela ouvir uma queixa... Se embrenhava pela mata e voltava com suas raízes, folhas ou sementes. Aí, começava seus processos de lava, ferve, esmaga... E lá vinha a pomadinha para o machucado, a folha amassada para aliviar a dor, o chá na compressa ou na “xicrinha” ... E, rápido como um passe de mágica, os sorrisos voltavam. Aquilo se tornou tão natural  que, não raro, até se esquecia de agradecer a generosidade e a ciência daquela estranha criatura!
   Por onde começar? Eu me perguntava, rolando em minha cama, insone.
              Zelia da Costa

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

É LEI: TODOS CALÇARÃO O MESMO NÚMERO!


              

Há muito descobri o quanto os cursos dedicados à formação do magistério estão distantes das dimensões do Futuro e da Realidade da população infantil e adolescente.  Não fiz nenhuma pesquisa. Não consultei nenhum órgão especializado em estudos específicos para registro estatístico que forneça dados “medidos e pesados” a “especialistas,” dedicados à reformulação do putrefato “sistema de educação brasileiro” ou sirvam a espúrios interesses políticos.
Não precisa ser gênio. O produto, os professores, são a resultante do pensamento absurdo de profissionais que há anos se sucedem, com “pompas e circunstâncias”, numa verborragia funérea, a discorrer sobre um trabalho do qual eles, os doutores em Educação, distam anos-luz. Não me refiro aos velhos sábios. Refiro-me aos sábios “velhos” de hoje.
A cada intervenção no processo ensino/aprendizagem fica patente a inexperiência e o vácuo de quem pouco ou nunca trabalhou com alunos na sala de aula. É como se diz – a Teoria na Prática é outra.
Não estou aqui fazendo apologia ao despreparo, à abstinência intelectual. Ao contrário, defendo que o conteúdo de formação do Magistério seja coerente, não só com o momento atual, mas com as incríveis perspectivas.
O fato de os Professores sofrerem baixos salários é uma agravante, mas não é causa principal do fracasso no ensino público. Nem vou aqui enumerar o rosário de impossibilidades físicas: prédios, material didático, etc.
Quero, em verdade, saber onde esse projeto falido de educação pretende desaguar?
Somos campeões em promover ações na contramão da História. Diluímos nosso futuro por absoluta incapacidade de administrar projetos de grandeza.
Somos os tolos metidos a sabidos.
A lei que proíbe a matrícula de crianças, na faixa etária de seis anos, na primeira série, ignora “as diferenças individuais”. É mortal!
É um crime!
Os doutos senhores já ouviram falar em ritmo?
Cada indivíduo tem um ritmo próprio, sabiam?
Houve um tempo em que S.Paulo instituiu o fatídico “Ciclo Básico” que obrigava as crianças a permanecerem dois anos estacionadas. Depois deste período, supostamente “alfabetizadas,” elas seguiam todas para a primeira série.
            Havia crianças que, em dias, estavam prontas e outras, que precisariam de mais de dois anos para obter um resultado satisfatório. O modelo fracassou.
              Hoje, ouvi um desses “especialistas” defendendo a “lei”:
- Criança de seis anos não tem que “aprender”. Tem que brincar...jogar...
             Em que universo se perdeu essa criatura?
Para começar é preciso ver o mundo com os “olhos das crianças”!  Elas estão chegando. Tudo é novidade. Aprender e apreender e experimentar são ações naturais, espontâneas. A curiosidade comanda a motivação, portanto, nada mais inteligente do que criar situações de aprendizagem explorando a dinâmica do interesse com humor, movimento, sons e cores. De forma lúdica e divertida.
            O que isto significa? Significa que aprender não é chato, nem cansativo.  Certamente, este Senhor é oriundo de um sistema torturante de ensino/aprendizagem que ainda é muito utilizado hoje por aqueles profissionais a que já me referi. Entretanto, existem Professores que tornam este período animado, produtivo.  Seu trabalho exitoso encurta naturalmente o tempo e promove crianças à série subsequente, num processo indolor.
Depois, há um detalhe sutil – ignorar que as crianças são hoje muito mais inteligentes que outrora - é estar vedado. Os estímulos que as atinge não são os mesmos de pouco tempo atrás. Elas anteciparam o desenvolvimento de certas capacidades. Acionaram dispositivos da inteligência até de análise e dedução. Este grupo bem dotado cresce e precisa de estímulo para que se mantenha “alimentado”. Para que não perca o interesse. 
Embora não me surpreenda o obscurantismo dos “doutores” não me permito calar diante do mais grave – considerar o processo de aprendizagem torturante – quando são eles, com sua visão esquálida e mofada, autores e defensores do sistema, os verdadeiros carrascos.
             A quem interessa manter o “status quo”?
Respeitem as diferenças individuais!
Negar às crianças -  a matrícula... é o mesmo que obrigar a todas calçarem o mesmo número de sapatos.