sábado, 24 de setembro de 2022

                                          "CADÊ VOCÊ??? "                 

                  Existem expressões que grafadas ou não, atravessam o tempo... No entanto, há outras que, apesar de muito populares, não resistem porque caem em desuso. Creio, que este vácuo a que me refiro, ocorre devido à evolução dos costumes que não abrigam mais o sentido original da "experiência" infantil. Explico - porque quero saber, leitor, sua opinião.

                  Para que a dúvida não se instale entre nós, responda-me:

                  - Por onde anda o "Bicho Carpinteiro"? 

                  Se você não é "parte da minha geração", nem deve ter entendido a pergunta. Vou tentar esclarecer:

                   Quando eu era criança(faz tempo hein...kkkk), minha mãe usava esta indagação que me fez crer "ser amiga fiel de uma entidade invisível":

                   _ Olha o estado em que está vestida?Você rasgou a saia! A blusa mudou até de cor!!!Seus braços e pernas cheios de arranhões!...Vá tirar a lama desses pés!Não!....Melhor, tomar um banho! Um banho "caprichado", minha filha!...Que aconteceu? 

                   - Meu Deus! Você estava com o "bicho carpinteiro"? 

                   Eu dizia que não, claro, mas não conseguia convencê-la.

                 - Ninguém fica neste estado se não estiver com "Bicho Carpinteiro", minha filha! Onde você andou? Você precisa parar de andar nestes matos...É perigoso! Isso é coisa do "Bicho Carpinteiro"! Você é uma menina!Olha a Oneida(filha da vizinha)...Ela está sempre bonitinha, limpinha, arrumada... Você também devia se comportar assim:                                Parar de andar no mato, subir em árvore, pular na lama!                         

             Ela, a Oneida,  não tem "Bicho Carpinteiro"!

             E eu ficava ali, ouvindo aquela "ladainha" e pensando:                         -Se eu era seguida pelo "Bicho Carpinteiro"...                                                Por que não o via?                         

             Bem, com o tempo, fui me acostumando a conviver com aquela "entidade", também citada na escola pelas professoras, ao reclamarem do comportamento dos meus colegas! Sim! Porque lá.... Eu? Creia! Eu era um exemplo de virtudes! O Bicho Carpinteiro não conseguia tumultuar minha vida escolar. Ali, eu era "um modelo de aluna exemplar"! Ganhei até medalha de ouro por " Aplicação e Bom Comportamento" - um impacto inexplicável para minha mãe!

              Minha mãe era informada nos "Boletins Escolares" das avaliações nas provas,mas não havia registro de comportamento,portanto os elogios de dona Eumaya, minha professora e dos demais funcionários eram sempre uma razão de surpresa para ela. Só "dona Elza", a gorda e simpática cozinheira, se queixava da minha dificuldade para merendar:

            -  Ela enrola...enrola...mas não come nada! Eu fico espiando, insisto, mas não adianta...

              Aí, eu ouvia minha mãe, quase se desculpando dizendo que eu era mesmo muito "difícil para comer".

             Durante minha infância, até minha mãe morrer, dividi com o "Bicho Carpinteiro"minhas peraltices e aprendi a compartilhar com ele o ineditismo  das minhas aventuras. 

             Um dia... Ele também se foi e nunca mais ouvi falar dele.

             Hoje, subitamente,me recordei desse tempo e resolvi fazer esta indagação:

           - Você que me lê, algum dia, teve contato com o "Bicho Carpinteiro"? Sabe, acaso, por onde ele anda? Chegou a ser acusado de participar, quando criança, de alguma aventura capitaneada por ele?

              Pode me explicar porque esta "entidade"incoerente, audaciosa, aventureira, valente, divertida e fugaz, hoje não é citada? Reconheço que o "Bicho Carpinteiro" responde por minha audácia e criatividade.Devo a ele a coragem de enfrentar situações que não admitem fragilidade, nem ambiguidade de conceitos.Ensinou-me a evitar o perigo contido nas aparências e, que a Natureza não admite vícios, porque eles degeneram a realidade. 

             Subi morros, atravessei vaus de rios, caí de árvores e me sujei e escorreguei e "levei tombos", levantei e registrei que, não raro, me "emporcalhava" e cheirava mal! 

             Enquanto minha mãe definhava... "Fez-me alfabetizada" enquanto a Natureza se alinhava e sabiamente cumpria seu destino, revelando-me outra linguagem, descortinando a intimidade de seus cenários e me expondo soluções surpreendentes.

              Quanto ao "Bicho Carpinteiro", invisivelmente regia minha audácia... 

             Devo a ele, o acesso livre à intimidade dos habitantes da floresta - sapos, jabutis, morcegos, peixes, cobras e lagartos e também a possibilidade de entender e compartilhar sua peculiar linguagem, recursos e soluções! 

              Ele, o Bicho Carpinteiro - é "Meu Herói" - presente de um tempo certo!

             Por onde andará meu invisível companheiro de traquinagens?

             Bicho Carpinteirooooooo??? Cadê você? 

                                    Ou melhor :

             Bicho Carpinteiroooooooo??? 

                - As novas crianças precisam de você! 

domingo, 4 de setembro de 2022

              NEM TUDO É.... "FAZ DE CONTA"!

      O "Dia da Criança"estava próximo e deveria ser comemorado com especial intenção! Eram todas, crianças carentes e nós queríamos tornar esse dia - inesquecível! Desta vez, uma ideia começou a "tomar corpo"... De repente, sentimos que um clima de festa ia, pouco a pouco, se insinuando no ambiente entre as crianças. 

            Só um aluno, naquela época, tinha televisão em casa. Era pelo rádio, com a difusão de suas propagandas de festa e brinquedos para o "Dia das Crianças", a razão daqueles inocentes sorrisos.    As crianças sabiam que podiam contar com bolo e um saquinho de balas dados por nós. Esta foi a informação que recebemos da merendeira d. Maria, que ali trabalhava há anos. Ela nos deu esse recado a ser atendido e entendido. A diretora estava fora, de licença, aguardando  aposentadoria !      Assim, assumimos enfeitar a escola com correntes coloridas de papel! Era  nossa primeira experiência no magistério e exercido na surpreendente Zona Rural do Rio de Janeiro!          

          Para completar, Marilene,nossa colega e amiga de ginásio chegou com a notícia que Sr. Alfredo, seu pai, comovido com nossa carência de recursos para os festejos resolveu doar o bolo e os saquinhos de doces!        Para mim não foi surpresa porque ele tinha um "coração de tamanho desmedido". 

                Não sei como, nem de quem surgiu a ideia de fazermos "uma vaquinha" e completarmos as surpresas com um brinquedinho de lembrança nossa! Imagina! Que ideia mais estapafúrdia! Teríamos que adquirir cerca de sessenta brinquedos, atendendo aos interesses de crianças na faixa etária específica de sete a doze anos! O custo seria desastroso, mas a ideia nos dominou, apesar de combatida pelo bom senso... Ganhou adeptos e volume e venceu!          

          Que "raio" de brinquedos compraríamos? 

        Alguém sugeriu uma boneca para as meninas e um caminhãozinho para os meninos... 

        Caminhãozinho!Imagina! O custo seria alto...Que tal uma ideia mais humilde? Uma bolinha?... Uma bonequinha de plástico para as meninas? Boneca? E o custo? Uma bem  "baratinha"! Elas são horrorosas... Parecem bruxas! As crianças vão ficar com medo! Todas rimos muito! E essa bola?...Bola! Que bola? De que tamanho? É...Não havia acordo porque faltavam recursos!

        Ouvi, outro dia, uma menininha dizer que sonhava ter uma boneca com cabelinhos!...

        - E se a gente comprasse uma boneca dessas?

         Ouvi alguém reclamar:

        - Tá doida! "Pirou" de vez? Uma bonequinha pra cada uma vai ficar muito dispendioso! Somos nós que vamos assumir esta despesa, esqueceram?

           - Vamos tentar dar uma boneca com cabelo e para os meninos, que tal  uma "bola de capotão"( era como eles chamavam a "bola de futebol" revestida de couro...)

            - Nem pensar...Esta bola custa "uma nota"!

             Sabíamos ser quase impossível comprar os brinquedos, mas nós nunca fomos carentes. Tivemos uma infância saudável e feliz e nos sentimos tomadas por uma espécie de remorso... Nós tivemos muitos brinquedos e a ideia se fixou como "culpa," um remorso inconveniente e ganhou a certeza de uma boa ação.

          Não dormi com o desassossego dessa ideia!

           Dia seguinte,  fui a lojinha que havia próximo à estação de Santa Cruz! Lá existia um  pequeno bazar! De quando em vez, eu comprava, cadernos e lápis de cor para as crianças e o dono sempre parcelava a conta. Fui até ele porque conhecia a penúria de nossos alunos e falei do desejo de comprar aqueles presentes...Ele balançou a cabeça, penalizado e incrédulo!

           - Por que está me contando esta história?

            - Porque se houvesse a possibilidade do senhor comprar pra nós esses brinquedos no revendedor...Nós lhe pagaríamos parcelado, como prestações... Na verdade, ninguém da escola sabe que eu vim lhe pedir isso, mas vão ficar doidas se o senhor aceitar esta proposta porque nossas crianças são muito pobres e nunca terão esses brinquedos se não for nessas condições... Juro que o senhor receberá tudo" direitinho"... Eu me responsabilizo! Nós lhe pagaremos mensalmente!

         Dia seguinte, fui ao bazar e recebida com um sorriso inesquecível do seu Antenor, dizendo pra mim:

 _ Conversei com o revendedor e ele me disse que conhece a sua escola e sabe das condições do lugar... Primeira vez que vi aquele homem comovido com alguma coisa!A conta é grande, mas ele fez um preço "camarada", porque ficou impressionado com o gesto das professoras. Confio na senhora e sei que as professoras daquela escola tem um carinho especial pela criançada! Pronto! Negócio fechado! Os brinquedos devem chegar logo no início da semana que vem! Podem vir buscar!

         Bem, chegou o Dia da Criança! O filho de d.Maria, o Juju, montou a barraquinha onde foram servidas fatias do enorme bolo recheado e vários doces! Só isto, já era "uma festa"!

        Pularam corda, brincaram de roda, de esconde/esconde... Até que cansados foram chamados em fila para receber os saquinhos de balas, tabletes de doce de leite... Agora, o momento especial, quase solene: 

Antes de sair, cada criança recebeu, com um grande e carinhoso abraço, uma sacola que continha, para os meninos uma bola de couro, enquanto as meninas, maravilhadas, se extasiavam carregando nos braços... uma boneca "de cabelos longos"!

         Enlouqueceram! 

         Uns riam... Outros choravam! Não acreditavam no ineditismo da surpresa dos presentes...Nós também chorávamos...Não era só uma boa ação ! Soubemos, naquele instante, que aquilo se transformara num evento concreto  inesquecível de amor e esperança!

        O sonho pode se tornar realidade e nós faríamos isso ocorrer!

         Felizes e exaustos começaram a sair, encantados!...

         Súbito, ouvi uma gritaria, algo anormal estava ocorrendo!            D. Maria veio ao meu encontro, transtornada e do seu jeito canhestro me pediu que corresse porque uma professora e a mãe de uma aluna estavam quase se "atracando"!

          Corri e deparei com uma cena inesquecível e fora do contexto de até então! Para meu espanto, a professora chorava apontando para o chão onde uma boneca jazia espatifada!               Gritando, enlouquecida, a mãe dizia que aquele era um brinquedo maldito e, desvairada, pisava no que restava, enquanto a filha, chorando, pedia pelo amor de Deus que a mãe ficasse calma e não destruísse seu presente!

         Chocada, a professora foi retirada aos prantos da cena, enquanto eu  consolava a menina Solange e pedia a mãe que se acalmasse e fosse embora em paz, dando fim ao espetáculo desaprovado até pelas crianças!

          Dia seguinte a menina, muito acabrunhada, voltou às aulas. Na hora da saída eu a acompanhei. Sua mãe ao me ver, mostrou seu descontentamento. Ignorei! Abri a sacola que eu levava e retirei de lá duas bonecas - dei uma para a mãe e outra para a filha!  A criança enlouqueceu de alegria!

   Abracei a mãe que chorava!

   Disse-lhe baixinho:

 - Esta boneca é sua! Perdão ficou guardada muitos anos! Ela abraçou o brinquedo como se sentisse saudades...É sua! Sempre foi! Agora pode levar!

    Dias depois, ela me procurou pra contar que ia embora daquele lugar. Era uma fuga! O marido - presidiário -  mandou avisar que estava pra sair da cadeia. Anunciou também, que sabia que a filha estava crescida e que ela "seria dele" - antes de qualquer vagabundo! Ela sabia o que ele queria dizer e, por isso, resolveu sumir no mundo! Abraçou-me chorando...Agradeceu a sua "primeira boneca" que jurou guardar para o resto da vida...

         Seu sonhado brinquedo de infância - uma boneca!

       Pediu-me perdão e rogou que a outra professora a desculpasse pela cena do dia anterior. Estava se sentindo envergonhada e não tinha coragem de encará-la! 

        Ela me deu um longo abraço! Estava triste com a partida de um lugar onde tinha feito amigos e pelo fato de impedir a filha de frequentar a escola que amava! Eu,lamentando tal destino, roguei a Deus que as protegesse e também as suas bonecas pelo resto de suas vidas!

Zelia da Costa/NM/MT/Sábado/03/09/2022.