terça-feira, 29 de maio de 2012

NINGUÉM É VELHO O QUE NÃO FOI NOVO

Tomazinho era um menino feio!
Eu tenho uma tia que diz que não se deve “achar” uma criança feia.
- Nunca diga que a criança é feia. Diga: é tão engraçadinha, coitadinha!
Não sei o que é pior.
Neste caso, não seria honesto brincar de faz de conta. Tomazinho era muito feio e sabia. Esquelético. Tinha o rosto grande e comprido como uma lata de doce popular. A pele morena guardava a mestiçagem característica do “branco” brasileiro. Quando se olhava o rosto... nem olhos, nem cabelos se evidenciavam. Apenas aquela protuberância saltava aos olhos. Um nariz enorme. Espetacular! Um dia o chamaram de Pinóquio, mas não foi adiante a ironia porque o nariz do boneco, apesar de comprido, era delicado e tinha outro formato. O apelido não pegou. O caráter, sim.
Tomazinho desenvolveu a essa época um comportamento recluso. Mantinha-se afastado dos colegas na escola e se tornara tímido e introvertido. No recreio e nos intervalos se enclausurava num canto enquanto observava  Apolinho, um garoto alvo de sua atração e repulsa. Conscientemente, morria de inveja daquele menino forte, sorriso aberto, dentes perfeitos, cabelos soltos, cheios de cachos emoldurando a expressão viva de quem é feliz.
De família muito religiosa, quando Apolinho nasceu, o padre Lamego foi visitá-lo.
-Lindo garoto, dona Tetéia! Forte, hein!
Dorotéia feliz informou sorridente:
- Eratóstenes vai crescer com saúde, se Deus quiser!
- Eratóstenes?
- É, Padre. O nome do meu falecido pai.
- Meu Deus! O “Tosta” se chamava Eratóstenes?
- É!
O padre sentiu que precisava “salvar” a criança do antigo apelido, porque conhecia a maneira grosseira que chamavam o Tosta nas discussões de bar que causavam sérios transtornos à família.
Escuta dona Dorotéia, ele parece ter nascido para ser atleta... Ele é enorme... Um verdadeiro Apolo. (Foi o que ocorreu no momento!).
- Apolo, padre. Apolo! Que nome lindo! Quem foi?
O padre rápido percebeu a oportunidade.
- Este Apolo era forte, bonito...era atleta?
- Um deus da saúde, minha filha!
Não havia necessidade de entrar em detalhes. Até complicaria. Foi sábio ao evitar.
- Pronto, padre. Melhor assim. Apolo. Até porque eu tenho pensado – Tostinha... Tostinha...Daqui a pouco um engraçadinho troca o T pelo B e eu vou ficar furiosa!
- Eu te batizo Apolo. Em nome do Pai, do Filho...
Agora Apolo era o ídolo das meninas, líder dos meninos e alvo dos olhares aquilinos de Tomazinho.
Tomazinho era feio, já disse. Por que insisto? Porque creio que esta consciência de seu aspecto desagradável moldou o caráter promíscuo. Quando ria, ria um riso sibilante, estranho. Levantava de um lado só, o esquerdo, o lábio superior. Aí, seu rosto ganhava uma expressão maléfica e, quando ao sorriso de hiena se aliava o olhar penetrante da águia, era assustador!
Até hoje ele usa essa máscara ameaçadora para intimidar seus oponentes como se fosse depositário de algo capaz de destruir qualquer reputação.
Tornemos ao passado, pois foi lá que aconteceu a metamorfose que estratificou a personalidade viscosa de Tomazinho.
 A solidão do menino estava prestes a ser, pelo menos, aparentemente minimizada. D. Florentina, a professora de Português, gostava dele e não fazia segredo. Tinha pena do menino horroroso, mas inteligente. Ele não participava com brilho das aulas. Não dizia nada que pudesse garantir uma ascendência intelectual, porém seus resultados nas provas eram excelentes e ele começou a ganhar prestígio.
Quando Tomazinho sentiu que os elogios escancarados geravam popularidade, resolveu investir em História e Geografia!
- Gumercinda! Ano que vem Tomazinho vai ser seu. Ele é meu melhor aluno. Vai pra sua turma. Cuida bem dele.
Aquilo assim, dito no corredor em alto e bom som, diante de todos os outros alunos, de forma absurdamente transversa, deu a Tomazinho a visibilidade que até hoje ele sabe explorar.
Um dia. Há sempre um dia. Apolinho caiu na tolice de pedir cola aTomazinho durante o teste de gramática. Rápido como a raposa Tomazinho passou-lhe a prova por baixo da mesa. Resultado: Apolinho tirou a nota máxima. Ingênuo, agradeceu ao amigo o desprendimento. Ofereceu a troca de favor, pôs-se à disposição, caso viesse precisar de algum. Apolinho era o melhor em Matemática. Se Tomazinho necessitasse... porém isto nunca aconteceu. Tomazinho o queria devedor.
Tomazinho tornou-se o melhor amigo de Apolinho e, sem saber, sua “cobaia”. Ele agora vivia aos segredos com o novo e único amigo. Incitava-o a brigas e discussões e depois tomava a frente na defesa, no jogo do exercício de poder.
O tempo passou. Tomazinho aprimorou seus tentáculos. Aprendeu a manipular interesses e informações. Captou a confiança de quadrilhas importantes. Desenvolveu técnicas especiais na arte da conspiração. É um homem temido. Tem a sua volta Apolinhos e Tostas. Diverte-se. Menospreza seus clientes. Engessa a lei. Submete poderes. Tornou-se um advogado de porta de cadeia.Que importa? O antigo menino se diverte atiçando a matula sob sua proteção. Conhece todos os seus segredos e isso faz deles seus reféns de estimação.
Tem, na teia de suas relações, presas importantes capturadas como barganha, moeda de troca decisiva no seu jogo de forças subreptícias. É respeitado e temido como qualquer mafioso, mas há diferença - com extraordinários salários transformou-se em criminalista de sucesso.
    Não importa a origem do dinheiro que paga seu trabalho. Ao contrário, isto pode gerar até nova defesa, outro processo do cliente que o remunerou, usando, quem sabe, verba não contabilizada.
    Assim, Tomazinho mantém hoje na cara velha o mesmo olhar aquilino, o mesmo sorriso de hiena e, no exercício do poder de sua eminência parda garante a manutenção da corja impune.
   Ah! Tomazinho continua feio. Mais feio ainda.
   Ninguém é velho o que não foi novo.
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   Soube que Tomazinho morreu. 
  Segundo a lenda, foi recebido pelo índio Galdino. Um menino morto, cremado, que dizem, o perseguia nos seus sonhos!

domingo, 27 de maio de 2012


                        ATÉ QUANDO?
Não sou socióloga. Não entendo nada de psicologia. Dito isto, sinto-me bem mais à vontade para esta conversa.
Quando eu era criança, os adultos costumavam pedir para eu me afastar, se queriam conversar sobre coisas que eram impróprias aos ouvidos infantis. Embora algumas pessoas julgassem tolo o pedido, dado a minha pouca idade, minha mãe invariavelmente insistia porque sabia que eu era capaz, sim, de entender quase tudo que seria dito. Ela não tinha dúvidas. De nada valia a minha angelical expressão e o meu, planejado olhar inocente.
- Querida! Vá brincar lá fora um pouquinho com as meninas!
Eu ia. Danada da vida. Bem devagar... para dar tempo de saber do que tratariam. Distante, observava as expressões: sorrisos, olhares, cochichos, gestos, etc. Tentava decifrá-los.
Por que eu estou dizendo isto?
Porque vivi o suficiente para usar esta observação, exercitada durante anos, em benefício da minha perspicácia. Provavelmente, o fato de ter minha mãe morrido quando eu ainda era criança exacerbou meu instinto de defesa e apurou minha sensibilidade neste sentido.
- “Ler as entrelinhas” é mais que interpretar o texto. É atingir o âmago da intenção do autor( dizia meu amado Professor Manoel de Cavalcante Proença).
Estendi esta habilidade adquirida às conversas, aos discursos. Fui muito além dos textos escritos.
Será que isto tem alguma implicação com o motivo da minha angústia atual?
Às vezes, não é necessário ser tão arguta para perceber quando há um descompasso entre gestos, ações e a natureza dos propósitos que percorrem caminhos  tortuosos e íngremes tentando desnortear a observação para impedir a descoberta dos espúrios objetivos?
Compliquei?
Esclareço!
Você acha que há pessoas capazes de obstruir sua própria inteligência e sensibilidade para evitar ter que tomar decisões que lhe irão contradizer a impressão, fragilizar a convicção já explicitada, defendida até com certo furor, ou melhor, a opinião concebida e já desmoralizada sobre uma idéia, uma escolha ou sobre alguém.
Pior é quando esta impressão se caracteriza falsa e se deteriora pela força das evidências. Insistir em mantê-la latente torna-se questão de honra porque mudar de opinião, corrigir este engano será para certos indivíduos, assumir a cumplicidade no engodo evidenciando um erro de avaliação. Isto fere a própria vaidade. Arruína sua autoconfiança. Destrói sua credibilidade. Esta sua nociva crença sedimenta sua decisão. Covardemente, então insiste no erro. Cala. Omite-se.
E quando estas pessoas se multiplicam, multiplicam, multiplicam e atingem o número desalentador de milhões - um povo?
Penso: o que lhes faltou?
1 -  Ser expulso da conversa de adultos?
2 – Ter a mãe morta na sua infância?
3 - Ter sido aluno do notável Prof. Manoel de Cavalcante Proença?
4 – Ter a marca da Dignidade de meu Pai?
Ou saber que a Coragem é a Razão Maior da Própria Existência?
               Creio que fui clara. Entretanto, aconselho a todos cuja dignidade ainda clama começarem a “ler as entrelinhas”.

               Coragem.