sexta-feira, 29 de junho de 2012

IGOR



                      IGOR

Antes de conhecê-la fui conquistada pela grandeza da sua história. Eu tenho muita sorte! Se a vida me envolveu em algumas tramas dolorosas, também foi capaz, tenho que reconhecer, de me oferecer oportunidades de conviver com pessoas cuja dimensão do caráter e pureza de amor enobrecem o espírito humano.
Minha amiga Rita é professora de piano, proprietária do Instituto Villa Lobos, em Adamantina, um Conservatório de Música que dirige com carinho, sensibilidade, dedicação e competência há muitos anos. Um dia, ela veio me contar ter sido procurada pela mãe de uma criança com Síndrome de Down. A mãe havia, tempos atrás, pedido um favor especial - gravar os sons dos instrumentos de sua escola para o filho começar a identificar a sonoridade de cada um.
- Zelia, esta mãe é uma mulher incrível! Imagina que o Igor nasceu com um problema que prejudicou seus músculos e que dificilmente ele poderia andar. Você acredita que ela deixou apenas a mesa no centro da sala de jantar e começou a “engatinhar” em torno dela com o filho? 
Aos poucos, o menino foi recuperando os movimentos e hoje, aos três anos, ele anda perfeitamente. Uma amiga comum me disse que se somasse a extensão percorrida, este trabalho paciente chegaria a quilômetros, mas que tinha sido realizado com tanto carinho e critério que o menino se divertia sem perceber o esforço.
         Foi assim que tomei conhecimento da existência de Igor.
         Certa vez, Rita me falou que a mãe de Igor estava muito feliz porque o menino tinha conseguido distinguir alguns sons: sino, campainha, buzinas etc. Agora, ela queria o registro de instrumentos musicais, mas estava encontrando dificuldades.          Para começar ela gravou, então, no Conservatório pequenos trechos melodiosos de piano, flauta, órgão e violão. Rapidamente, o menino foi capaz de identificá-los. Diante do resultado tão animador ela procurou Rita na busca de sons de outros instrumentos. Rita comentou comigo. Lembrei-me que meu amigo, o Maestro Júlio Medalha era, na ocasião, Diretor e Regente da Orquestra Sinfônica de S. Paulo. 
         Liguei para ele. Contei-lhe a história e perguntei se haveria possibilidade de atender à mãe de Igor. Ele tornou a me telefonar dizendo que conversara com os músicos e sorridente me informou o dia de ensaio que ela poderia comparecer.                       Comuniquei a mãe de Igor. Ela ficou feliz e grata pelo meu interesse. Estávamos emocionadas. Quando ela retornou da viagem contou-me feliz:
        - Todos, o Maestro Júlio Medalha e os Músicos foram extremamente generosos e solidários. Todos queriam que eu gravasse seus instrumentos e como haviam vários instrumentos repetidos- violinos, trombones, etc.,eu pude gravar sons resultantes de diferentes técnicas o que produziu notáveis variações. Agora tinha o registro dos sons de uma orquestra sinfônica!
     Harpa, oboé, violino, trombone, fagote, pratos, etc. Serei eternamente grata ao maestro pela nobreza de sua compreensão e carinho e aos músicos pela paciência e generosidade.
          O tempo passou. Igor estava com quase cinco anos quando sua mãe me procurou. Queria matricular seu filho no Pinguinho de Gente, minha Pré-Escola.
        - Infelizmente não poderei atendê-la. Até gostaria, mas não tenho professor especializado nesta área.
         - Eu tentei a APAE, mas são muitas crianças e...
         - Eles são especialistas, retruquei.
         - Eu sei, mas você também é.
         Rimos juntas. Ficava difícil recusar a quem tinha experiência em milagres, negar a possibilidade de fazer acontecer mais um.
          - Espera. Eu preciso de um tempo. Um tempo para eu
pensar “como”, quando, se...
          Ela foi embora feliz.
          Conhecendo sua tenacidade, sabia que não desistiria.

          Havia uma pracinha próxima à escola. Nela um pequeno lago exibia uma delicada ponte de madeira com toque oriental. De resto, canteiros bem cuidados e árvores antigas e floridas sombreavam os bancos, também de madeira, dispostos calculadamente pelo espaço. Os canteiros coloridos por flores e pequenos arbustos e grandes árvores atraíam as lindas borboletas, flores aladas a encantar minhas crianças. Os pássaros não economizavam surpresas nas cores e nos cantos. Eu gostava de ir com os alunos aquele lugar depois da merenda. Gostava de vê-los sentados ao redor enquanto contava histórias. Eles se encantavam com as descobertas de minhocas, caramujos... Eu queria que eles desenvolvessem a observação e lhes garantir a oportunidade de entender que a terra que se pisa tem vida...
      A terra é viva!
     Foi ali, que uma criança me fez ver o caminho.
    - Olha só! Esta árvore grandona e esta tão pequenininha!
    - A Natureza é assim. Olhem quantas plantas diferentes! Todas convivendo no mesmo jardim. No mesmo espaço. Vou fazer um desafio:
     - Quero que vocês me mostrem duas folhas da mesma planta que sejam iguais! Iguaizinhas: mesmo tamanho, mesma cor, mesmo feitio, mesma idade!
  Entusiasmados entraram no jogo.
  Depois de um tempo, já com os ânimos arrefecidos, chegaram à conclusão que embora tivessem origem na mesma planta havia sempre um detalhe que impedia ser igual.
 - A Natureza é sabia. Olhem pra nós. Temos olhos, boca, cabelos.
Parece que somos iguais. Olha que maravilha! Cada um de nós é único! Cada um de nós é um milagre da Natureza! Somos, cada um, exemplar sem cópia!Agora olhem o jardim. Essa plantinha tão pequena protege as raízes expostas dessa árvore grande, livra-a de insetos que a fariam adoecer e até morrer! Neste jardim cada planta também é original e vivem todas no mesmo espaço e cuidando umas das outras. Todas são importantes, necessárias, preciosas. Todas tem uma razão para existir. 
      Olhem cada um de seus coleguinhas: 
      - Vejam que maravilha!
      -Vocês estão vendo uma pessoa única! 
      -Ninguém é igual a ninguém!
      - Cada pessoa é original, importante. É um presente e juntos somos um grande milagre. Cada um de nós tem qualidades especiais. Juntos podemos fazer coisas maravilhosas.
     Se eu tirar uma plantinha dali, ela é capaz de morrer. Ali, junto com todas, ela está feliz e segura. É preciso proteger a Natureza.
    Vamos dar um grande abraço nas árvores. Eu garanto que elas vão ficar felizes.
    A Natureza durante tempos e tempos construiu este trabalho de identidade e, é um crime contra Ela querer que todos sejam iguais. Nós precisamos ser dignos deste milagre. Compreender isto nos faz merecer a vida!
    A Natureza é generosa! A gente precisa aprender com Ela!
  Contei pra eles, ali mesmo, que estávamos para receber um novo colega e expliquei:
- Vocês viram que há folhas maiores, menores... Mas todas são folhas. Isto é natural. Não há nada de especial nisso. Elas são todas folhas. Vocês concordam?
Às vezes, uma plantinha precisa de mais cuidado, Isto não a torna especial porque ela já é única, como todas as outras.
   - Igual à gente! Alguém disse.
   Isso mesmo. Igual à gente!
- É claro que eu vou precisar do apoio de todos vocês. Sabem por quê?
 Porque ele nunca estudou em outra escola. É como esse jardim, vocês são minhas flores. Eu sou essa árvore grande, mas preciso de vocês minhas plantinhas para me ajudar a ajudar Igor. Igor é o nome dele. Posso contar com vocês? Ele precisa de amigos como vocês. Amigos especiais, como nós.. Precisa do carinho, como vocês, eu, todos nós. E aí?

    Se você não acredita que eu falei desta forma e que eles entenderam perfeitamente é porque você está ano-luz distante da inteligência e da sensibilidade das crianças. Elas não só entenderam como abriram espaço há mais de vinte anos, para minha primeira experiência de integração de crianças com Síndrome de Down nas classes comuns.  
   Minha experiência com alunos de três, quatro, cinco e seis anos me levou a concluir que as crianças nascem com possibilidades de inacreditável capacidade para aprender, porém ingressam neste modelo educacional do país e vão “emburrecendo”. Quando eles estão quase estúpidos, aí, eles fazem vestibulares. Aqueles que conseguem escapar deste rebanho ou são dotados de inteligência privilegiada ou deram a sorte de frequentar uma boa escola ou encontraram mestres raros,escapam!
    Quando Igor chegou eu não o coloquei, imediatamente, na sala de aula. Precisava conhecê-lo. Conhecer sua reação naquele ambiente estranho cercado de adultos e crianças que não eram de sua intimidade. Para que se integrasse com naturalidade ele merendava junto e participava da recreação. Duas semanas, o tempo necessário para sua adaptação.
Logo chegou Marina. Ela já frequentara outra escola.
Quando Igor e Marina começaram no Pinguinho de Gente houve uma debandada de alunos. Os outros pais não admitiam a convivência daqueles retardados com seus filhos. Fiquei em pânico. Os pais das duas crianças me procuraram querendo desistir porque temiam o tamanho do meu prejuízo.
- As crianças tiveram maturidade e solidariedade para entender a importância desta convivência. Esses adultos preconceituosos e ignorantes ainda vão se envergonhar. Os dois ficam.
    Soube que os pais de Igor e Marina foram às residências destes alunos pedir que retornassem porque eles não queriam me prejudicar.
    Fiquei muito aborrecida quando soube disso depois. Eu já tinha decidido que podiam sair todos porque eles ficariam. Questão de honra.
  Alguém deu “parte” da minha decisão de “misturar” crianças retardadas com crianças normais e recebi, de repente, a visita de um psicólogo para observar o comportamento e a convivência do grupo.
     Deixei o “doutor” à vontade. Pediu-me que indicasse as crianças. Percebi pela sua expressão que não aceitava a situação.
- Descubra! Eu posso lhe garantir que as duas crianças estão neste ambiente. Sorri debochando.
  Como estavam extremamente atentos, envolvidos na atividade e as mesas eram circulares, sentados e de costas, ele não conseguia identificar os dois. Só quando os chamei pelos nomes e eles atenderam é que ele os reconheceu.
 Eles sorriram felizes e acenaram e voltaram à atividade, motivo de seu interesse no momento. Eu os interrompi:
- Temos visita. Vamos lhe dar “boas vindas”?
 Sorridentes todos ficaram de pé e cantaram e encantaram. Eram tão pequenos...
- É Professora. Não sei como consegue, mas consegue. Desculpe a minha visita inesperada. Não vou mais importuná-la. Foi muito bom vir aqui.
  Senti que estava envergonhado, pois, chegara cheio de empáfia.
Ao se despedir me contou a verdade.
 - Sabe esta história de agregar todas as crianças desta forma tinha tudo pra não dar certo.
-É. Mas deu. As pessoas não ajudam, mas gostam de atrapalhar.

 Com o tempo algumas crianças retornaram. Tinham saudades. Ficaram chorosos, outros agressivos. Alguns passaram a dormir mal. Os pais foram vencidos e eles estavam de volta.
   Depois de Igor e Marina, chegaram mais três.
  Um dia a mãe de Igor me procurou chorosa:
- Ah! Professora! Meu marido foi nomeado para Dourados. Fica em Mato Grosso do Sul. Estamos tristíssimos porque Igor vai muito bem. Ele adora a escola e está quase lendo.
- Ah! Professora, essa integração com as outras crianças foi muito benéfica. Ele canta, diz versos, mostra os trabalhinhos pra todo mundo. Suas pinturas são inacreditáveis. Ele tem prazer em vir e falar de seus amigos, dos passeios, brincadeiras, da bandinha... sou muito grata a todos. Levou-nos para conhecer a árvore que plantou na cidade. Disse que é dele. Ele tem que protegê-la.
- Você conhece a nova cidade?
 - Não, mas vamos mudar logo.
Fiquei muito triste, além do mais, Igor era o principal “tambor” na bandinha.
   O tempo passou e um dia a mãe de Igor foi me visitar. Notei que estava feliz.
 - Professora, desculpe interromper seu trabalho, mas precisava lhe falar.
- Como vai Igor?
 - Quando cheguei a Dourados fui logo procurar uma escola e pra minha surpresa havia uma pré - escola com o mesmo nome da nossa – Pingo de Gente! Acredita? Pingo de Gente! 
   Entrei para conhecer. Fui recebida pela Diretora que era a dona e foi logo me explicando que fazia um trabalho diferenciado porque como tinha um filho com síndrome... Ela acreditava nos benefícios da integração para todos  e era este o sistema que oferecia. A senhora acredita? Eu fiquei sem fala. Ela soube que eu vinha aqui e mandou cumprimentá-la pelo incrível sucesso de Igor. Ele já está lendo. É um menino alegre, cheio de amigos, porém sente muita saudade. Pediu que lhe desse um grande abraço e muitos beijos.
 Ah!Adora música!
  Eu estava sem fala e chorando. Outro Pinguinho de Gente...em Mato Grosso do Sul!
 Hoje esta integração tem a garantia da lei.
 Agora me diz:
Tenho ou não tenho razão pra acreditar em milagres?

quarta-feira, 27 de junho de 2012

UM DIA. QUEM SABE?


          UM DIA. QUEM SABE?


       Quando, de verdade, serei Poeta?

       Quando verei além da aparência
                  a sutil essência da alma das coisas

       Quando verei nas gentes com isenta humanidade
           a transparente verdade ou seu avesso em processo

       Quando ouvirei o som, além da melodia

       Quando desnudarei nas intenções vadias
                                    as vontades audazes
                                     as orações crédulas

       Quando desvendarei a expressão contida

       Quando enxergarei na existência dorida
                                  o oculto desconexo

       Quando serei capaz de alimentar a chama
                      daqueles que amam
                nas frases nuas de meus versos

       Quando sentirei num sopro – a Arte 

       Este fogo que arde e faz nascer o Poeta! 

       Quando, de verdade, serei Poeta?

                        www.zeliadacosta.com

    
     

domingo, 17 de junho de 2012

O MAGO


                                O MAGO
Eu o conheci já velho. Nunca consegui imaginá-lo jovem. Nas estórias infantis, as bruxas permeiam as narrativas. São mulheres horrendas. Criam situações perversas e provocam angústia e sofrimento. Todos querem se livrar do fardo da existência de um ser cuja presença é constante ameaça ao bem estar. Neste caso não! Este era um velho querido, amado por adultos e crianças. Se o considero um bruxo é justamente pelo fascínio que exercia sobre todos.
       Nunca se soube onde morava. Sua origem era um mistério. Ele, simplesmente, surgia com seu sorriso luminoso e seu olhar penetrante, mas não inquisidor. Abria os braços perfumados por um cheiro de ervas do mato e um abraço caloroso envolvia um por um, na ternura da sua presença. Homens, mulheres e crianças se abrigavam naquele momento de mágica doçura.
Ninguém conhecia sua história. Ninguém sabia onde morava, de onde vinha. Nem os mais velhos que poderiam ser contemporâneos sabiam como ele era quando jovem. Ninguém se lembrava dele criança ou adolescente.
        Ele surgia e desaparecia sem vestígios!
        Havia quem dissesse que sua família morrera e ele crescera só. Havia os que garantiam que ele viera de outra cidade, que abandonara sua casa e saíra pelo mundo. Enfim, muito se dizia, nada se provava e ninguém ousava indagar. Nem as crianças, sempre irreverentes, se interessavam por saber, embora alguns adultos já tivessem tentado, há tempos, alimentar a chama da curiosidade infantil.
Bem, certo é que ele existia com seu olhar, seu sorriso, seus abraços e sua voz e era, imediatamente, cercado. As crianças queriam ouvir suas histórias. Os adultos queriam contar suas histórias. Para estes, ele se tornara uma espécie de mago. Muitos ansiavam por sua visita. Contavam seus males - angústias, problemas domésticos e financeiros, suas queixas de saúde, etc. Os mais ansiosos queriam previsões.
Ele falava pouco. Ouvia muito. Sorria sempre. De quando em vez fechava os olhos, comovido. Logo, os abria enternecido. Pondo as mãos sobre os ombros ou sobre a cabeça de quem o buscara, sussurrava algo que provocava no interlocutor uma expressão de conforto e gratidão e os, agora confiantes passos,  se afastavam rumo a esperança.
Tudo hoje aguçava minha curiosidade. Afinal, quem era ele?
Minha ansiedade não era bem vista. Cada vez que ousara investir no assunto era eu a submetida a verdadeiro inquérito. Todos queriam saber o porquê da minha irreverente e extemporânea curiosidade. Era como se, desvendado, o encanto fosse quebrado e algo profundamente lamentável ocorresse. Havia uma espécie de elo de proteção a envolver em sombras aquela existência singular. O temor pela minha falta de sensibilidade e esta súbita insistência numa pesquisa que não convinha, tornou-me personna non grata. Ninguém entendia porque uma jovem nascida e criada ali, convivendo com todos, de repente resolvesse romper a ordem natural das coisas. Como estivera um tempo estudando fora, era para todos sacrílega minha súbita investigação. Irritou-me bastante a princípio ver como, pouco a pouco, fui sendo relegada por vizinhos, amigos de infância e até parentes. Irritada, magoada mesmo, entendi que seria mais inteligente conter, por um tempo maior, minhas intenções e tentar me aproximar contendo a ansiedade.
- Está cansado? Hoje o calor está castigando a gente!
      Ele me olhou sorrindo e sacudiu a cabeça concordando. Logo, as crianças nos envolveram aos saltos, pedindo-lhe uma estória. Ele foi para um canto, sentou-se sobre uma pedra como num trono, sob a majestosa sombra de um milenar jequitibá. Todos se aninharam a sua volta e ele começou:
- Havia um homem que vivia aqui perto. Bem próximo de vocês. Acho até que algum morador mais velho daqui deve saber quem é, mas a alma dele vivia longe... muito longe...
- Onde?
- Onde? Nem ele sabia.
- Como ele era?
- Ele não era mau. Era infeliz! Ele não via cores. Não sentia os cheiros... Não se encantava com as formas, com os desenhos que a Natureza traça e que suavizam vidas. Existem desenhos  na Natureza que inspiram e orientam a nossa inteligência e sensibilidade. Vocês já observaram as nuvens quando se acumulam e formam figuras que nós imaginamos conhecer. É lindo!É divertido e alivia a alma. Rufo não sorria. Rufo era seu nome.
- Ele era doente?
- Sim. Doente da alma!
- O que é alma?
- Por que ele não via cores?
- Deve ser ruim não sentir cheiro, nem perfume.
- Ele não olhava para o céu?
         Pacientemente, o velho sorria! Esperava que contivessem as indagações, agora mais importantes que o enredo que ele estava prestes a desenvolver.
         Percebi o quanto devia a esses momentos e também que o tempo em mim tinha desenvolvido um físico adulto, porém o mago se mantivera com o mesmo aspecto de quando o conheci ainda menina. Estranho... Esta constatação fez acometer súbito mal estar e o frio que me percorreu a coluna parece tê-lo atingido porque ele se ergueu e fitou-me, severamente, como se repreendesse a ousadia da minha silenciosa observação. Depois, sentou-se novamente e sorrindo respondeu:
          - Alma? A alma é a razão da vida! Ela faz vocês levantarem de manhã.
         - Quem me faz levantar é minha mãe! Minha mãe é alma?
          Todos riram.
         - Sua mãe o desperta, o acorda, mas se sua alma deixasse de existir você continuaria deitado. Não acordaria!
        - Nunca mais?
        - É.
        - E aí?
        Logo, alguém interrompeu:
      - Então é isso! Quando a alma vai embora a gente morre!
      - Não! Respondeu o velho com um sorriso benevolente. A gente não morre.
      - Quando a alma da minha avó foi embora... enterraram ela!
      - Enterraram seu corpo. Sem alma, ele não tinha mais serventia.
      Houve um burburinho nervoso.
       - Bem, vou indo... vocês... parece, não estão interessados mais na história!
       Foi um clamor geral!
      - Não! Por favor, continua! A gente fica quietinho! Só uma coisa! Uminha, só!Um garoto lá na escola atirou uma pedra num gato. O gato não estava fazendo nada. Só estava passando.
A professora ficou brava. Disse que ele era um menino mau.
Que aquilo era coisa de gente sem alma! Gente desalmada! Mas ele estava vivo e acordado! Como podia ele estar sem alma?
Pode gente viva viver sem alma? Gente desalmada é gente ruim? É o quê?
 - Não! É gente que está com a alma doente! Assim como seu corpo fica doente... sua alma também fica! A alma dele não o deixou. Apenas, por alguma razão adoeceu! Ele pode tratar dela e curá-la.
- Tem remédio pra isso? Pra curar alma doente?
- Tem sim!
- Vende onde? Eu conheço uma menina sem alma!
- Se vocês deixarem eu continuar...
- A gente deixa! Gente! Cala a boca, deixa o “vô” contar!
- Pois bem! Continuando. A alma de Rufo estava doente!
- As cores e os aromas, os cheiros das coisas... continuavam existindo, mas ele não era capaz de sentir,  nem de ver! Por causa disso ficava irritado com tudo! Se ele via um pássaro cantando... ele não se encantava e sim reclamava porque o pássaro ia sujar em seu quintal! Se passava por um jardim... ele destruía as flores, porque elas iriam atrair borboletas com seu voejar irritante, besouros e um número infinito de desprezíveis insetos. entre eles as abelhas que só servem para picar!
      - Mas as abelhas fazem mel!
       - Em nada ele via sentido, nem registrava a importância de toda a vida natural! Tudo estava contra ele, assim pensava!
      Sua alma doente não tinha espaço para armazenar as belezas!
      O belo é a primeira função da alma! Ver o belo! Descobrir a beleza é vital para a felicidade!
      Mesmo quando o cheiro das coisas é desagradável, nossa alma está presente, indicando formas de torná-lo especial como um alerta, porém se você tem sua alma doente...você se torna incapaz de praticar uma ação que resolva o problema, de criar uma conexão criativa! Você não se importa! Mesmo sabendo que, talvez, você seja responsável pela causa! Jogar lixo na rua, matar, roubar, devastar florestas, ignorar as necessidades dos outros São muito comuns atitudes nocivas em pessoas que tem a alma enferma. Rufo era doente, sofria e não sabia a causa! Estava infeliz! Quem de vocês poderia ajudá-lo? Por onde começar?
     Eu estava pasma! Então, foi assim que o velho pôs na minha cabeça a responsabilidade da minha existência? Viver é um compromisso real com todas as outras vidas.
      Outra vez seu olhar me encarou! Eu me assustei. Parecia que ele lia os meus pensamentos! Desviei meus olhos como desviei há tempos... minhas esperanças!
       - A alma tem luz! Ela ilumina !
      -  Ela tem fogo, vô?
 - Tem! É um fogo que não queima, só clareia, ilumina, mas como todo fogo pode apagar... a alma de Rufo escureceu! Por isso ele estava doente.
      -  Como a gente pode acender a luz da alma?
      - Como vocês acham que isto pode acontecer?
       - Não fazendo coisas erradas?
      - Não fazendo maldades?
      - Vocês entenderam a pergunta? O que é necessário fazer para curar a alma, para acender a sua luz, novamente? Vocês disseram o que não se deve fazer. Eu quero ouvir o que se deve fazer. O que Rufo deve fazer pra encontrar a felicidade?
       - Ser generoso! Respondi aflita.
      Todos os olhos se voltaram pra mim! As crianças consideraram uma intromissão. Afinal o momento era delas!
       Ele, docemente, interferiu dizendo:
      - Este é o caminho que alguns abandonam. Quando nós ajudamos alguém... o bem que fazemos acende nossa alma e a  felicidade enche nossa vida de cores e perfumes e formas. Rufo se perdeu no caminho. O que Rufo poderia fazer para ser feliz?
      - Plantar flores!
       - Deixar as borboletas e as abelhas pousarem!
      - Recolher o lixo deixado por alguém!
       - Salvar um animalzinho!
      - Ajudar um mendigo!
      - Olhar a Lua! É linda!
      O velho abriu um largo sorriso!
       - Agora sim! Podemos ajudar Rufo!
            O velho sábio encantava e com simplicidade conduzia quem o ouvisse, pelas sendas da vida! Que importava sua origem e o mistério de sua existência se a alma dele era como um facho de luz irradiante a acender almas pelo caminho!
       Às vezes, quando sou tomada por uma desilusão, quando a decepção se aprofunda e sinto desvanecer a minha fé no ser humano, percebo que a chama de minh’alma tremula e se retrai. Rapidamente, respiro fundo, penso no que posso fazer para alimentar a chama e agradeço comovida a generosidade do velho feiticeiro!

quarta-feira, 6 de junho de 2012

BEM A TEMPO


                                          BEM A TEMPO

Estranho a sensação que me abstrai do cotidiano, que me aliena do momento presente e me devolve à cena e às vozes de um tempo vivido num espaço sonoro de múltiplas percepções. Rio, sozinha, ao perceber que me embriago nesta viagem, sem necessitar qualquer droga, pelo simples fato que bebo e cheiro e injeto em meus sentidos as emoções, numa orgia que exacerba minha sensibilidade faminta e que devora vorazmente, embora aparente calma, cada cena vivida no desencadear de minha história.
Acabo de ouvir num antigo gravador, uma fita com vozes crianças que não cantam mais. Alguns poucos cresceram, vivem. De um conjunto de dez, só cinco restaram. É isso o que me impressiona nesta viagem sonora e não tão distante, mas comovente.
Ao revisitar esse momento, identifico os múltiplos objetivos que entrelaçados de forma subliminar, lúdica e alegre estabeleciam conceitos importantes para o desenvolvimento inteligente de um grupo de alunos de três e quatro anos.
Diante do gravador, estou frente ao futuro. Ouvindo o som longínquo, sou arremessada ao tempo por vir, pois, era para ser colhido adiante, o fruto do trabalho estruturado naquele momento.
Percebe-se na gravação além das vozes que imitavam o leão, o cachorro, o gato, o tigre, ruídos relacionados à dinâmica de alguns gestos improvisados, mímica espontânea usada no registro das características do comportamento dos animais domésticos e na natureza.
O que me importa, já, é entender o tempo, esse enígma que domina nossas ambições e se revela senhor de nossos projetos e cúmplice perverso de nossas ansiedade e frustração.
Agora, aqui, ouvindo as vozes infantis quase toco no futuro. Este pretérito futuro que levou pra sempre Marcelinho, Guga, Ricardo, Larissa, Alison enfim, o indicativo de um futuro imperfeito.
O tempo é invento. Não tem medida. Assim, o passado não é imutável, vencido, alheio, antigo. Ele se move.Conspira. Congestiona. Caminha por onde o presente transita. Imprime sua presença nos sentidos, gestos e ações.
   Condiciona o que há de vir? Quem sabe?
Nem o futuro, para mim,se projeta obediente a um modelo ímpar. O futuro aciona as lembranças, precisa de memória que o impulsione e ancore. Não se localiza no espaço. É prova da imponderabilidade do tempo. A certeza da nossa pusilanimidade.
 Tudo foi, mas será? Nunca é.
O presente é a ilusão da certeza. Impressão volátil!
O tempo não existe. Existe a mente.
As vozes lindas que ouço não se foram. Nem irão.
E aquele futuro, num tempo passado... É presente agora.
Zelia da Costa/MT