Ela amava flores. Levava-me
a passear no Horto Florestal Municipal. Gostava de chamar minha atenção para o
recorte das folhas, seus desenhos e os tamanhos e cores das flores. Os insetos,
variedade deles e suas formas. Visitávamos, regularmente, os viveiros e ela
ficava investigando para descobrir se plantas novas estavam sendo cultivadas e
quais se renovavam brotando. Era encantada com os feitios das sementes.
Havia um jardineiro
velhinho que nos acompanhava. Ele era “todo atenção” porque sentia o quanto seu
trabalho era valorizado pela minha mãe. “Seu Chiquinho” conhecia os segredos da
reprodução das plantas, do preparo das mudas. Gostava de ensinar as técnicas de
“enxerto” que faziam renovar cores e espécies. Minha mãe o ouvia e encantada
fazia perguntas enquanto as mãos grossas e encarquilhadas exibiam com gestos
doces, ora caules, ora raízes, ora flores, ora sementes e desfiavam os segredos
da terra. Com o conhecimento de quem dedicou a vida a amar a vida, explicava tudo
em detalhes com carinho e paciência à minha curiosidade aflita.
Seu Chiquinho nos
recebeu um dia no portão. Estava eufórico:
- Dona Odette me
acompanhe, por favor!
- Aconteceu alguma
coisa?
- Aconteceu! No outro
dia, eu lhe disse que o Doutor me pediu para cuidar de uma planta muito
especial. Ele me fez mil recomendações. Não lhe disse é que ela veio de outro
estado, país... e ele queria que fosse reproduzida. Ficamos, os dois, observando como ela
se comportava. Ficou muito triste quando percebeu que alguma coisa ruim estava
acontecendo e resolveu conseguir outra muda e abandonar a coitadinha! A senhora
sabe como eu fico ˜arrasado˜ quando isso acontece...
Minha mãe tentou
consolá-lo:
- “Seu” Francisco o
senhor é tão dedicado. Não fique triste porque, com certeza, ele sabe que não
há ninguém melhor neste trabalho. O senhor é especial, mesmo. Vai ver a
plantinha já chegou doente.
- Pois, num foi o que
aconteceu? Eu levei a coitadinha lá pros fundo. Lá... onde eu cuido das
fraquinhas, das que sofreram com alguma doença ou ataque de “largartas”, pulgões... a senhora sabe, né?
- Um “hospitalzinho de plantas”?
- Isso mesmo! Eu fiz um
cantinho só pra isso. “Eles” nem sabem. Eu quero que a senhora e a menina
venham ver uma coisa.
Seguimos.
Havia uma construção
rústica de bambu coberta de palha de coqueiros. Estava abrigada do sol, à
sombra de um imenso ingazeiro. Não havia porta. Uma esteira era enrolada e
amarrada acima das nossas cabeças e, dentro desta “enfermaria”, em “leitos”
separados e organizados, as plantas eram acomodadas. De acordo com a enfermidade ou exigências do
tratamento eram agrupadas em estantes grosseiras.
- Ah! Seu Chiquinho!
Isto aqui é muito lindo!
Lindo? Olhei pra minha mãe
intrigada! Seu rosto estava iluminado! Eu conhecia bem aquela expressão. Era a
mesma de quando aprovava alguma coisa boa que eu fazia.
Seu Chiquinho estava
todo bobo!
- Gostou menina? Olha
aqui neste cantinho!Sabe como se chama? Antúrio! É a tal planta que o diretor
deu “perdida”! Vou fazer uma surpresa pra ele!
- Nossa! Seu Chiquinho,
eu não conhecia! Antúrio!
- Tá vendo a flor dela?
Olha que cor de rosa lindo!
- Parece um coração!
- Verdade, filha! É um
coração!
- Eu fiz três mudas,
dona Odette!
- Nossa! O Diretor vai
ficar surpreso!
- Se vai! Vou deixar
uma aqui pra fazer mais. Esta é dele. E esta é sua, se a senhora quiser!
- Seu Chiquinho não faz
isso!
- Dona Odette o povo
vem aqui pra comprar mudas pro jardim. Quando eu pergunto depois como estão as
plantas, eles dizem:
- “Tão lá”!
- “Tão bonitas”?
-“Tão”.
- Às vezes eu tinha
vontade de fazer outras perguntas porque tem gente que “bota planta de sombra
no sol”, sabe? Elas sentem muito, podem
morrer! Mas fico quieto que é melhor! A senhora não! A senhora leva, “diz que pegou”, vem me contar as “novidades” e se preocupa quando as “coisas não vão bem”. A senhora gosta
delas de verdade! Aceita, por favor! É um presente!
Vi que os olhos da
minha mãe estavam molhados!
- Você vai chorar?
Perguntei usando a conhecida inconveniência Infantil. Ela riu.
- Dá mesmo, filha,
vontade de chorar. Seu Chiquinho, vou cuidar dela com muito carinho. Pode
deixar! Muito obrigada!
Voltamos pra casa com o
vasinho embalado no colo dela como se fosse uma criança!
- Você gostou tanto assim?
- Adorei, filha. Gostei
demais! Vamos ter corações no jardim... Não é lindo?
Voltamos muitas vezes
ao horto e durante alguns anos, até que minha mãe adoeceu.
Um dia, fui com meu
pai, que também conhecia seu Chiquinho!
- Ela me pediu que lhe comunicasse
que não poderá mais vir e pediu para lhe dar um abraço!
O velhinho passou
aquela mão calosa de dedos nodosos sobre meus cabelos do mesmo modo que
acariciava suas plantinhas. Sacudiu a cabeça. Segurou no braço de meu pai e nos
olhou com piedade. Depois, sem falar, virou de costas e saiu a passos lentos
pela sombra das palmeiras. Meu pai ficou imóvel por um tempo, segurando forte
minha mão.
Agora você respira
fundo. Eu disse que minhas histórias parecem ficção, mas não são!
Sabe Aquele Antúrio?
Durante muitos anos
sobreviveu e reproduziu gerações! Seus descendentes já viveram em vasos de
cerâmica, de cimento, xaxins... Já viveram no Rio de Janeiro, São Paulo, Rondônia...
Quando olho suas folhas,
a elegância de suas formas, a delicadeza
de suas flores que agora brotam no chão do meu jardim, fico comovida diante
desses corações que palpitaram durante tantos anos, vivos como a saudade!
zeliadacostamt@gmail.com
zeliadacostamt@gmail.com
Minha amada tia, cada vez que leio suas histórias é um misto de sensações: orgulho de ser sua sobrinha, emoção pois a senhora consegue chegar ao mais profundo do meu ser. Como é lindo tudo que a senhora escreve. TE AMO MUITOOOO.
ResponderExcluirImpossível resistir! A leitura trouxe, como sempre, a impressão de estar ouvindo você contar fatos: das entonações, modulações na voz, no olhar... e por vezes a culminante explosão da risada gostosa que a faz chorar, ou das lágrimas brotadas - como plantinhas novas, das vivas lembranças semeadas no tempo. Também eu me emocionei... Que lindo!!!!
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