sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

QUEM CANTA...


         A diretora da Escola Franklin Távora se aposentou. Por ser a professora mais antiga fui designada para assumir seu lugar até que houvesse outra nomeação. Foi nesta época que tudo aconteceu!
       Quando ele chegou tinha os olhos acesos e o sorriso iluminado. Vinha de mãos dadas com Luzia que o puxava em minha direção. De repente, eu estava cercada por um bando de “tagarelas”. Falavam juntos e eu, confusa, queria saber a causa de tanta “turbulência”.
       - O que está acontecendo?
       Todos queriam explicar ao mesmo tempo.
       - Luzia! Quem é o rapazinho? É parente seu?
     Na família de Luzia, ao todo, eram onze irmãos.  Ela, sua irmã Elisa e seu irmão Nascimento eram os mais novos. Tinham, respectivamente, oito, nove e dez anos. Luzia era a mais “espevitada”, embora os outros dois também fossem bastante desinibidos.
- Professora! Este é o Luís. Eu trouxe ele aqui porque a gente quer saber o que a senhora vai fazer por ele?
- Como... fazer por ele?
- Ele nunca estudou, professora!
- Luís! Quantos anos você tem?
  Ele tentou mostrar com as mãos.
- Ele não fala! É mudo!
- Ah! Sim!
   Fiquei surpresa e sem saber o que dizer.
- Eu trouxe ele pra ver o que a senhora pode fazer. Eu disse a ele que a senhora ia ajudar ele. Ele ficou tão contente que foi correndo se arrumar!
- Luzia, ele não fala, mas ele ouve?
- Ouve!
- Tem certeza?
 Ele sinalizou com a cabeça que ouvia!
- Onde ele mora?
- “Pertim” de minha casa!
   Eu conhecia esse “pertim”... devia ser, no mínimo, três horas a pé.
- Que idade ele tem?
- Parece que é quatorze anos...
  Com a cabeça, Luís concordou.
- Luzia, com essa idade eu não posso matricular ele aqui!
      Os sorrisos se foram e olhares decepcionados agora me encaravam magoados.
        Caro leitor, não sei se você leu um outro texto meu em que falo da Esperança, intitula-se Bené.  Minha Esperança sempre escrevo com letra maiúscula.  Leu? Então, sabe que eu tenho pavor de destruir os sonhos de Esperança de alguém. Sabia que aquele “comboio” de crianças tinha vindo até mim movido pela Esperança e me senti mal, tão mal que tive vontade de chorar. Eu não tinha a menor idéia do que fazer. Luís tinha quatorze anos, mas parecia ter dezesseis. Era um rapazinho! Era alto e forte enquanto, naquele lugar, a maioria era “esmirrada” pela desnutrição. Tinha o rosto de menino e alguém... com certeza Luzia, prometera minha compaixão e o seu resgate.
    Nunca nenhuma escola o aceitou, afinal ele era mudo! Precisava de profissionais especializados e o único lugar, na época, em que poderia ser atendido era o Instituto de Surdos/Mudos que funcionava na Praia Vermelha, muito longe de Santa Cruz.
       - Luzia! Leva ele pra tomar o leite. Deixa ele lá e volta aqui pra falar comigo!
       Ela saiu exultante, o grupo os acompanhou, mas ainda pude ouvi-la dizendo baixinho:
      - Viu? Não disse que ela ia ajudar você? Eu sabia!
       Senti um calafrio! Dessa vez eu estava “enrascada”! Não tinha a menor idéia do que fazer. Parecia que tinha levado um soco no estômago. Não era a primeira “peça” que Luzia me aprontava!
      Ela entrou na sala sorridente:
     - Professora! Eu sabia que a senhora ia ficar com pena dele!
     - Luzia! Presta atenção! Nem sempre eu posso ajudar...
Você tem que primeiro vir falar comigo... Você já trouxe o Luís... e se eu não puder fazer nada? Vai ser pior pra ele, não vai?
     - Eu sei que a senhora vai ajudar! Olha, professora, a história dele é muito triste! Ele tinha dois anos e falava tudo!Tudinho!
     - Se ele falava tudo, o que aconteceu? Porque ele não é surdo!
     - Sabe como foi... chovia muito, muito, muito mesmo e de repente, a casa dele “desbarrancou”. Sabe o que é desbarrancar?  Ficou todo mundo debaixo da terra! Então, morreu todo mundo: o pai, a mãe, o irmão e a avó! Só salvou ele! Aí, ele nunca mais falou! A tia é quem cuida dele. Ela não conseguiu fazer falar nunca mais. Ele ajuda ela na lavoura lá na fazenda que ela trabalha. Ele é bonzinho e o sonho dele era estudar aqui, aí eu pensei:
     - Vou levar ele pra minha professora e vou pedir a ela pra deixar estudar lá! É o sonho dele!
     - A senhora vai ajudar ele, não vai?
     - Vou!
      Eu me ouvi respondendo e nem sei de quem era aquela voz!
      Luiz ficou, durante uns quinze dias, frequentando as aulas para eu o conhecer, confiar e ganhar sua confiança. Pela primeira vez usava lápis de cor, pincel, tesourinha. Estava maravilhado! Neste ambiente eu poderia me relacionar com ele, diariamente e observá-lo. Também eu precisava me refazer e obter informações de sua tia, não só saber mais detalhes, como pedir sua permissão para levá-lo à cidade.
   Tinha ido até o Hospital Infantil Jesus, que ficava no centro do Rio e contado ao otorrinolaringologista toda a história de Luís. O médico pediu-me que o levasse até ele para exame. Levei-o preocupada, porém Luís tinha consciência de que eu nunca lhe faria mal, graças também às articulações de Luzia.
   O médico o examinou:
      - Tudo em ordem professora! A questão é emocional mesmo! Pena ter levado tanto tempo pra tratar. Ele vai precisar de ajuda psicológica!
      - Nem pensar doutor! O Posto de Saúde de Santa Cruz não tem esse profissional.
     - Assim, fica difícil!
     - Eu sei! Estou feliz por ele não ter problema orgânico que o impeça de falar. Agora vou pensar, vou pensar...
     Daí pra frente, Luís começou a frequentar a escola, de verdade.
       Não podia. Não tinha mais direito. Vencera aos quatorze anos o limite da clientela do, na época apelidado,” ensino de primeiro grau diurno”. De qual direito estamos falando?
      Num raio de cinco quilômetros não havia curso noturno. Como ele se deslocaria do interior de um matagal sozinho, uns dez quilômetros, que seria a distância a vencer até o centro de Santa Cruz a pé!
         Conversei com Nancy e combinamos iniciar um trabalho diferenciado e que foi evoluindo do desenho de animais conhecidos, que ele adorava colorir, para as respectivas vozes que ele repetia rindo. Era a mesma turma de Luzia que sorrindo o incentivava com um balanço de cabeça.
     Um dia sua professora saiu da sala de aula aos prantos:
     - Zelia!Corre lá pra ver o que está acontecendo!
     - O que foi Nancy?
     Ela quase não conseguia falar:
    - Vai lá! Vai lá!Vai lá!
     Fui. Para minha surpresa, as crianças agiam como se todos esperassem este momento:
     Sorridente e bem alto, Luís cantava!
 As palavras não soavam com clareza, a língua parecia se enrolar, os sons se agrupavam embolados e a melodia saía aos “arrancos”, mas - ele cantava!
           O mais espetacular foi sentir a cumplicidade das crianças. Ao ouvi-lo não interromperam a canção, não riram, não zombaram daquele esforço que Luís fazia e que só a persistência e o carinho de Nancy, a música e a solidariedade daquelas criaturinhas, realmente especiais, foram capazes de fazer eclodir. As crianças continuaram como se fosse a coisa mais natural, aquela voz estranha surgir de forma crua entre eles. Seus olhinhos me olhavam iluminados. 
        Estavam ali a serviço de um milagre!
 zeliadacostamt@gmail.com

Um comentário:

  1. Lindo! Esta história é verídica ou ficcional?

    Se for verídica, tiro meu chapéu para vocês, estou maravilhada com o nível de fraternidade e comprometimento, parabéns!

    Abraços, Nivea.

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