A
diretora da Escola Franklin Távora se aposentou. Por ser a professora mais
antiga fui designada para assumir seu lugar até que houvesse outra nomeação.
Foi nesta época que tudo aconteceu!
Quando
ele chegou tinha os olhos acesos e o sorriso iluminado. Vinha de mãos dadas com
Luzia que o puxava em minha direção. De repente, eu estava cercada por um bando
de “tagarelas”. Falavam juntos e eu, confusa, queria saber a causa de tanta “turbulência”.
- O que está acontecendo?
Todos queriam explicar ao mesmo tempo.
- Luzia! Quem é o rapazinho? É parente
seu?
Na
família de Luzia, ao todo, eram onze irmãos. Ela, sua irmã Elisa e seu irmão Nascimento
eram os mais novos. Tinham, respectivamente, oito, nove e dez anos. Luzia era a
mais “espevitada”, embora os outros dois também fossem bastante desinibidos.
-
Professora! Este é o Luís. Eu trouxe ele aqui porque a gente quer saber o que a
senhora vai fazer por ele?
-
Como... fazer por ele?
-
Ele nunca estudou, professora!
-
Luís! Quantos anos você tem?
Ele tentou mostrar com as mãos.
-
Ele não fala! É mudo!
-
Ah! Sim!
Fiquei surpresa e sem saber o que dizer.
-
Eu trouxe ele pra ver o que a senhora pode fazer. Eu disse a ele que a senhora
ia ajudar ele. Ele ficou tão contente que foi correndo se arrumar!
-
Luzia, ele não fala, mas ele ouve?
-
Ouve!
-
Tem certeza?
Ele sinalizou com a cabeça que ouvia!
-
Onde ele mora?
-
“Pertim” de minha casa!
Eu conhecia esse “pertim”... devia ser, no
mínimo, três horas a pé.
-
Que idade ele tem?
-
Parece que é quatorze anos...
Com a cabeça, Luís concordou.
-
Luzia, com essa idade eu não posso matricular ele aqui!
Os
sorrisos se foram e olhares decepcionados agora me encaravam magoados.
Caro
leitor, não sei se você leu um outro texto meu em que falo da Esperança,
intitula-se Bené. Minha Esperança sempre
escrevo com letra maiúscula. Leu? Então,
sabe que eu tenho pavor de destruir os sonhos de Esperança de alguém. Sabia que
aquele “comboio” de crianças tinha vindo até mim movido pela Esperança e me
senti mal, tão mal que tive vontade de chorar. Eu não tinha a menor idéia do
que fazer. Luís tinha quatorze anos, mas parecia ter dezesseis. Era um
rapazinho! Era alto e forte enquanto, naquele lugar, a maioria era “esmirrada”
pela desnutrição. Tinha o rosto de menino e alguém... com certeza Luzia,
prometera minha compaixão e o seu resgate.
Nunca nenhuma escola o aceitou, afinal ele
era mudo! Precisava de profissionais especializados e o único lugar, na época,
em que poderia ser atendido era o Instituto de Surdos/Mudos que funcionava na
Praia Vermelha, muito longe de Santa Cruz.
- Luzia! Leva ele pra tomar o leite. Deixa
ele lá e volta aqui pra falar comigo!
Ela saiu exultante, o grupo os
acompanhou, mas ainda pude ouvi-la dizendo baixinho:
- Viu? Não disse que ela ia ajudar você?
Eu sabia!
Senti um calafrio! Dessa vez eu estava
“enrascada”! Não tinha a menor idéia do que fazer. Parecia que tinha levado um
soco no estômago. Não era a primeira “peça” que Luzia me aprontava!
Ela
entrou na sala sorridente:
- Professora! Eu sabia que a senhora ia
ficar com pena dele!
- Luzia! Presta atenção! Nem sempre eu
posso ajudar...
Você
tem que primeiro vir falar comigo... Você já trouxe o Luís... e se eu não puder
fazer nada? Vai ser pior pra ele, não vai?
- Eu sei que a senhora vai ajudar! Olha, professora,
a história dele é muito triste! Ele tinha dois anos e falava tudo!Tudinho!
- Se ele falava tudo, o que aconteceu? Porque
ele não é surdo!
- Sabe como foi... chovia muito, muito,
muito mesmo e de repente, a casa dele “desbarrancou”. Sabe o que é
desbarrancar? Ficou todo mundo debaixo
da terra! Então, morreu todo mundo: o pai, a mãe, o irmão e a avó! Só salvou
ele! Aí, ele nunca mais falou! A tia é quem cuida dele. Ela não conseguiu fazer
falar nunca mais. Ele ajuda ela na lavoura lá na fazenda que ela trabalha. Ele
é bonzinho e o sonho dele era estudar aqui, aí eu pensei:
- Vou levar ele pra minha professora e vou
pedir a ela pra deixar estudar lá! É o sonho dele!
- A senhora vai ajudar ele, não vai?
- Vou!
Eu me ouvi respondendo e nem sei de quem
era aquela voz!
Luiz ficou, durante uns quinze dias, frequentando
as aulas para eu o conhecer, confiar e ganhar sua confiança. Pela primeira vez
usava lápis de cor, pincel, tesourinha. Estava maravilhado! Neste ambiente eu
poderia me relacionar com ele, diariamente e observá-lo. Também eu precisava me
refazer e obter informações de sua tia, não só saber mais detalhes, como pedir
sua permissão para levá-lo à cidade.
Tinha ido até o Hospital Infantil Jesus, que
ficava no centro do Rio e contado ao otorrinolaringologista toda a história de
Luís. O médico pediu-me que o levasse até ele para exame. Levei-o preocupada,
porém Luís tinha consciência de que eu nunca lhe faria mal, graças também às
articulações de Luzia.
O médico o examinou:
- Tudo em ordem professora! A questão é
emocional mesmo! Pena ter levado tanto tempo pra tratar. Ele vai precisar de
ajuda psicológica!
-
Nem pensar doutor! O Posto de Saúde de Santa Cruz não tem esse profissional.
- Assim, fica difícil!
- Eu sei! Estou feliz por ele não ter
problema orgânico que o impeça de falar. Agora vou pensar, vou pensar...
Daí pra
frente, Luís começou a frequentar a escola, de verdade.
Não
podia. Não tinha mais direito. Vencera aos quatorze anos o limite da clientela
do, na época apelidado,” ensino de primeiro grau diurno”. De qual direito
estamos falando?
Num raio de cinco quilômetros não havia
curso noturno. Como ele se deslocaria do interior de um matagal sozinho, uns
dez quilômetros, que seria a distância a vencer até o centro de Santa Cruz a pé!
Conversei com Nancy e combinamos
iniciar um trabalho diferenciado e que foi evoluindo do desenho de animais
conhecidos, que ele adorava colorir, para as respectivas vozes que ele repetia
rindo. Era a mesma turma de Luzia que sorrindo o incentivava com um balanço de
cabeça.
Um dia sua professora saiu da sala de aula
aos prantos:
- Zelia!Corre lá pra ver o que está
acontecendo!
- O
que foi Nancy?
Ela quase não conseguia falar:
- Vai lá! Vai lá!Vai lá!
Fui. Para minha surpresa, as crianças
agiam como se todos esperassem este momento:
Sorridente e bem alto, Luís cantava!
As palavras não soavam com clareza, a língua
parecia se enrolar, os sons se agrupavam embolados e a melodia saía aos
“arrancos”, mas - ele cantava!
O mais espetacular foi sentir a cumplicidade
das crianças. Ao ouvi-lo não interromperam a canção, não riram, não zombaram
daquele esforço que Luís fazia e que só a persistência e o carinho de Nancy, a
música e a solidariedade daquelas criaturinhas, realmente especiais, foram
capazes de fazer eclodir. As crianças continuaram como se fosse a coisa mais
natural, aquela voz estranha surgir de forma crua entre eles. Seus olhinhos me
olhavam iluminados.
Estavam ali a serviço de um milagre!
zeliadacostamt@gmail.com
zeliadacostamt@gmail.com
Lindo! Esta história é verídica ou ficcional?
ResponderExcluirSe for verídica, tiro meu chapéu para vocês, estou maravilhada com o nível de fraternidade e comprometimento, parabéns!
Abraços, Nivea.