sexta-feira, 9 de outubro de 2020

                      ÁGUA MOLE... EM PEDRA DURA...

          - Tava doida pra senhora chegar!

          Num dá mais pra bebê, nem cuzinhá com essa água daqui! Vige! 

          Oia só! A água tá embaçada e fedendo! Num dá nem pra moiá a horta! Nem sei si vai servi pra lavá os banheiro! Tá uma fedentina...

          - Que aconteceu, dona Maria?

           - Sei lá?! Sei não! Só sei que num dá mais!... Tou disisperada!

             Eu fui então, até o bebedouro das crianças e o copo que enchi estava turvo, com forte odor putrefato!  

           - Será que tem algum bicho morto no poço?

           - Não! Num tem! Já pidi ao Juju pra espiá... Ele jogô a caçamba várias vez...E nada... mas a "murrinha" no poço é forti!Que será? 

 (Juju era seu filho e funcionário da mesma escola)

        - Bem, dona Maria, a solução é comunicar ao Distrito Educacional e ver se a gente consegue um pouco de água aqui, nesta granja vizinha, só pra fazer a merenda e as crianças beberem... Certamente, eles não negarão!É só até a gente resolver!É uma emergência!

          - Gente do céu... Tou preocupada... Quanto tempo vai durar esta afrição?

         - Calma, dona Maria! Já, já vamos resolver isso!

          No mesmo dia, fui ao Distrito Educacional. órgão responsável pelas Escolas da região de Sepetiba e Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Sepetiba é região litorânea, enquanto Santa Cruz, a zona rural.

          Narrei o ocorrido e fui informada pelo Chefe de Distrito que a gravidade da situação impunha ser comunicada por Ofício dirigido a ele, que o encaminharia ao Administrador Regional, uma espécie de "prefeitinho", o chefe político da Região. Nesta época, o Rio de Janeiro era dividido em Administrações Regionais, um arremedo de "pequenas prefeituras".

         Aguardei por três dias a solução. Nossa situação era dramática.A água cedida pela Granja do Sagrado Coração era trazida em baldes e panelas numa "via crucis" sob o sol ardente de um verão à temperatura acima de 40 graus à sombra. Para aliviar o martírio de Juju, o filho da Dona Maria que era nosso servente,  Seu Inacinho, o taxista que o estado alugava para conduzir as professoras da Estação Ferroviária de Santa Cruz até a escola, penalizado com a dramaticidade da situação, gratuitamente, reservou um horário de seu dia de trabalho para nos atender e conduzia, generoso o dedicado Juju, nesta dolorosa empreitada, um triste arremedo da "via crucis" no transporte de baldes e tonéis e panelas contendo o precioso líquido.

        Fiz outro ofício, mais outro, outro mais... Nada! Resolvi, então mandar um por dia. Foi um escândalo!Enfim, eu os atingi! Fui chamada ao Distrito Educacional!

       - Professora, a senhora não pode mandar um ofício por dia! A senhora devia saber que deve aguardar o andamento do processo!

       Embora ele estivesse irritado, tentava falar com calma e num tom conciliador, deixando claro minha incompetência em lidar com procedimentos burocráticos legais:

       - Veja! A senhora manda o ofício e nós encaminhamos à Administração Regional. Isso já foi feito!

       - E aí, professor Darcy?... Quanto tempo o senhor acredita que a solução demora?

      - Bem, agora temos que aguardar o memorando do Administrador Regional informando que providências cabem!

       - Ah! Enquanto isso, eu escravizo o coitado do faxineiro... Fico devendo favor ao motorista de táxi e, humildemente, rogo aos donos da Granja que me cedem, por caridade, a água que eles pagam ao governo... É isso? Ou então, eu finjo que está tudo bem e contamino as crianças, sei lá com o quê?...É isso?....Está bem, assim?

        Foi uma cena caótica! Eu apoplética! Ele em choque!

        - Professora, serviço público funciona assim... 

         Aguarde, por favor, as providências. Vou ligar hoje para o administrador e ver "em que pé estão as coisas".

       - Tudo bem. Não vou mandar mais ofício... Usei o "ofício" porque conheço a inutilidade dos trâmites legais. Queria incomodar a inércia oficial! Queria provar que a urgência, não tem tempo pra esperar. Obrigada!

         Dia seguinte, de repente, ouvi um tumulto e vejo Juju gritando à beira do poço:

       - Donaaaaa Zeliaaaaa! Corre aqui!!!

       Corri para o quintal. Junto à beira do poço, Juju sustinha numa vareta.......uma cobra que acabara de ser, por ele, recolhida nas águas do poço.

      - Veio no balde!

      - Coitadinha!... Exclamei, penalizada!

      - Coitadinhos de nós!  Quase que bebemos água daí! Ela está morta agora, mas parecia meio mole quando a "pesquei"... Pelo visto, essa água fez a cobra adoecer... Essa água fede! Está podre!Como é que pode?

      - Juju, por favor, põe ela num vidro com esta água daí! Vou até a Administração... Vou mostrar isso a eles...Quem sabe, não aceleram a solução... 

   Antes de entrar no prédio da Administração Regional, fui interrompida por um funcionário que, muito simpático. me perguntou a razão da visita:

    - Olha, pra ser mais suscinta, vou lhe dizer que quero falar, pessoalmente, com o Administrador Regional.  Minha escola está cheia de problemas que já foram, oficialmente informados, porém o que me trouxe aqui requer solução urgente. Dá pra ele me atender?

    O rapaz demorou um pouco e pude perceber o movimento nervoso no prédio. Uma espécie de "vai e vem" aflito. Curiosa, perguntei a razão e fui esclarecida da visita do governador que viria inaugurar, dentro de alguns dias, a "remodelação" da Praça dos Jesuítas, um ponto histórico a ser preservado.

     Para se livrar de minha incômoda presença fui, rapidamente, liberada ao encontro com o administrador e ele foi logo me informando:

     - Estamos bastante agitados e ocupados professora. Já sei o que deseja e quero lhe informar que agora vamos receber o governador Carlos Lacerda e depois trataremos do "seu assunto".

    - Ah! Que bom! O senhor já sabe do "meu" assunto e eu fiquei sabendo agora do "seu"... O governador vem aqui, né? Está vendo esse vidro? Esse copo é seu? Com licença!Quero que o senhor "prove"essa água! Esta água é do poço da minha escola e olha aqui a garrafa, tem até uma cobrinha dentro. Foi "colhida"no poço pelo servente: 

   - Bebe... Ah! bebe vai... É uma rara iguaria que devo servir às crianças!

   -  A senhora está brincando...

   -Ué? Se é bom pra eles... 

     Ele estava meio atordoado e aproveitei:

   -  O Senhor disse que o governador vem aí semana que vem... A estrada passa perto da minha escola.Vou recebê-lo com as crianças e vamos interromper o caminho... A gente leva a Bandeira... Ele vai achar que é homenagem...Vou levar a garrafinha e um copo...

     Ele estava pasmo!

    - Sinto ser uma ideia brilhante! Obrigada e desculpe interromper seu trabalho!

      Saí intempestivamente... Eu sabia que o tinha atingido e que ele estava surpreso e chocado! Toimmmm!Agora doía nele! Era quase uma forra pelo pouco caso... 

              Dia seguinte, quando cheguei à escola, levei um susto com a gigantesca máquina perfuradora "ferindo" a terra na construção de um poço!      

            As aulas foram interrompidas!                    

             Pedreiros corrigindo o chão do refeitório que fora esburacado há tempos e pintores me indagando, se queria todas as salas de aula com a mesma tonalidade ou preferia que cada uma delas tivesse a cor que combinasse com a das carteiras velhas que nós, as professoras, havíamos pintado, durante as férias, para dar mais alegria aos ambientes e surpreender as crianças no retorno às aulas, com a novidade!... Bem, os móveis ficaram lindos, mas essa despesa para espanto de todos, já fora por nós assumida, apesar dos parcos salários!

         Agora, a escola ganhou sala azul celeste, verde- limão, um suave cor de rosa e um doce laranja. 

           O prédio ficou lindo!

          A escola ficou nova! Uma festa!

      Linda e rapidamente corrigidos os detalhes negativos!

     Como esperávamos, as crianças enlouqueceram!

     O engenheiro responsável pelo evento me informou que as raízes da Mangueira, árvore frondosa que "sombreava" o quintal, tinham criado um canal de comunicação subterrâneo, com suas raízes, entre o esgoto dos banheiros e o poço. Por isso a água fedia! Estava altamente contaminada!

    Que bom! Agora, com o problema detectado, o mal estava sanado e definitivamente resolvido com a construção do  poço artesiano.

     Um POÇO ARTESIANO! 

    Água limpa e permanente! 

    Espera! Não sei de que espécie era a Cobra  responsável pelo milagre?!!!...

    Que tal lhe dar um nome? Ela merece este carinho, não concorda?

     Sabia! Zelia, né?

  

                                      Zelia da Costa/Nova Lima/MG//09/10/2020/16:20

   


      


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