sábado, 26 de novembro de 2011

A BRUXA


  
 Não é possível dissociar o sorriso largo, da figura que diante de  mim, com olhos marejados  e ansiosos, expunha a ansiedade,  a curiosidade e hoje sei, a esperança.
               - Bom dia!
               - Bom dia! Fia!
Durante cerca de oito anos esta cena se repetiu!
Dona Maria era a servente daquela escola. Funcionária pública. Analfabeta. Sua função era limpar as dependências internas e
externas  e preparar o leite em pó que era servido às crianças.
          A construção de escolas rurais fez surgir ali, nos Palmares, a Escola Franklin Távora, com quatro salas para atender aos filhos dos trabalhadores das fazendas que existiam em Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
         Talvez, o isolamento tenha contribuído para dar à dona Maria a oportunidade de trabalho. O fato estranho é que ela precisou de documentos para ingressar no funcionalismo público e me contou, sorridente, que escolheu um dia, um mês e um ano para ter nascido e foi providenciar sua Certidão de Nascimento.
       Com o documento em mãos, se apresentou para ocupar a vaga e, não havendo outros interessados, ela foi admitida.
      Baixinha, “troncuda”, vestida com um uniforme azul celeste, de padrão  xadrez, um avental muito branco, que ela mesma resolveu adotar  e um lenço branquinho, bordado, que lhe prendia os ralos cabelos trançados...Ela se assemelhava a um duende em sua misteriosa origem.  
D. Maria tinha dois filhos: um negro retinto, alto, magro, muito  forte -  o Juju; outro, um mulato claro, alto, fortíssimo, magro, físico de atleta -  o Wilson! Todos dois com mais de um metro e oitenta e, apesar da aparência, Juju tinha dezoito anos e seu irmão quinze. Pareciam  homens bem mais velhos, o que estranhei! Aliás, aquele era um mundo pronto a me surpreender!
          As salas de aula, muito espaçosas e claras, evidenciavam o baixo índice de crianças matriculadas. Eram todas franzinas. Peles           amarelecidas, mãos e pés embrutecidos, unhas encardidas, cabelos em "grumos". Exalavam um odor desagradável e inesquecível e muitas exibiam no rosto pálido, feridas causadas pela secreção verde e grossa a escorrer do nariz.
         Roupas em frangalhos. Poucas usavam chinelos nos dois pés!
         É claro que eu conhecia a miséria brasileira! Livros e filmes já me haviam inserido neste contexto até agora fascinante, porém, nenhum escritor ou cineasta foi capaz de imprimir ao texto a dramática desolação!
         O espectro era maior porque não se exibia no sertão nordestino, não!
O horror era vizinho!
        Não eram olhos infantis, risonhos ou moleques que encaravam quase me pedindo desculpas pela ousadia!  Eram olhos opacos,   descoloridos, rasos!
      O perfume da mata nas cercanias tentava suavizar a dureza do momento, mas calcou na minha memória a marca antagônica que pode ser contida no contraste, o que me valeu até hoje como sinalização de alerta, impedindo que falsas aparências ou pequenos detalhes sejam capazes de mascarar, suavizar e me confundir quanto à crua realidade.
 Embora a Natureza emprestasse seu aroma  de magia, não havia  condições para exibir seu encantamento. Ali estava o registro da miséria, do descaso, da desfaçatez.
       O curso de formação de profissionais do magistério, “ Curso Normal”, altamente conceituado, cujas vagas eram disputadas nas provas “duríssimas” - escrita e oral -  mantido pelo governo, congregando em seu corpo docente profissionais de alta competência, dedicados e determinados a fazer cumprir o “Programa” cujo conteúdo era ora irrelevante, diante da verdade amarga, exposta agora, a minha tornada "incompetência".
     Algo porém, foi capaz de vencer meu torpor: 
       - aquele sorriso -  escancarado, confiante!
 Era como se dona Maria estivesse me esperando com a certeza  de que eu, como um “messias”, finalmente chegara. Esta perspectiva de esperança, assustadora e comovente, comprometeu o meu destino.
Ela usava chinelos “de dedos” e pisava para dentro como um     papagaio. Seus passos miúdos imprimiam ao andar o movimento pendular cadenciado, ora ligeiro, ora sereno, dependendo das suas aflições.
O prédio tinha sido construído na forma de “colchete”. Em uma “perna” ficava a cozinha e atrás dela, no sentido de sua extensão, na parede contígua, as dependências da casa do zelador, ora desocupada. Na “perna” oposta havia a Sala dos Professores, a Sala da Direção, um banheiro, uma sala destinada ao almoxarifado e uma outra sala, fechada à chave, cuja guarda era mantida  "aos cuidados" da Diretora.
Um pátio de chão de cimento vermelho, muito limpo, ocupava  o espaço entre esses ambientes. Um terço dele, próximo à cozinha, era cercado por parede vazada a uns dois metros do chão, permitindo ampla ventilação. Mesinhas quadradas, dispostas em linha, sinalizavam o Refeitório.
        O Banheiro das crianças cheirava mal. Quatro privadas e um box com chuveiro. Lavado e bem e todo dia. Eu via. Cheirava muito mal!
      As Salas de Aula eram dispostas duas de cada lado, separadas por um largo corredor que  dava entrada à escola, desembocando no pátio interno.
     Entre a escola e o muro em ruínas, um espaço de terra que perdera a memória de um jardim. De resto, nem cerca, nem muro, mas escrito num azul desbotado com letras maiúsculas, a certeza de que a Escola Franklin Távora era lá!
    Radiante, dona Maria serviu um cafezinho.
- Fresquinho, fia, pode tomá!
  Tomei, num esforço para não desagradá-la!
- Muito bom, obrigada!
- Qué mais? Toma mais...
-  Não! Não...é que estou com o estômago meio ruim...
- A fia tá cum dô di estrombo? Intão vo fazê um chá!
         E foi assim que conheci a maior especialidade de dona Maria -  o domínio  das Propriedades das Plantas!
Qualquer dor ou machucado era curado com seus chás,  unguentos ou mesinhas! Era uma bruxa! Em outras eras, noutro lugar seria queimada viva!
- Fia! A merma pranta qui cura...mata! 
  Nem todas as foia da merma pranta tem o mermo efeito! 
  Chá é remédio...demais é veneno!Nem todo chão dá ervra boa!
     Nem ela, nem seus filhos, algum dia, "foram ao médico!"
     -  Ficava longe, fia! Eu tinha vregonha! E num tinha dinhero!Dispôs era coisa miúda! Fácinho de resolvê!
Não havia cólica menstrual que resistisse aos chás de dona Maria,  nem dor de cabeça, nem dor de estômago...
         Era só ela ouvir uma queixa... Se embrenhava pela mata e voltava com suas raízes, folhas ou sementes. Aí, começava seus processos de lava, ferve, esmaga... E lá vinha a pomadinha para o machucado, a folha amassada para aliviar a dor, o chá na compressa ou na “xicrinha” ... E, rápido como um passe de mágica, os sorrisos voltavam. Aquilo se tornou tão natural  que, não raro, até se esquecia de agradecer a generosidade e a ciência daquela estranha criatura!
   Por onde começar? Eu me perguntava, rolando em minha cama, insone.
              Zelia da Costa

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