quarta-feira, 23 de novembro de 2011

AQUELE OLHAR


                           
 Acordamos bem cedo. Precisávamos estar logo em casa. Um compromisso de trabalho de meu marido era inadiável e nossos filhos ainda nos solicitavam intermitentemente. Eram quatro, da espécie mais moleca, aquela que se desenvolve dos três aos onze anos numa euforia saudável.   Esta viagem não fora de lazer e nem estava em nossos planos. O falecimento de minha tia querida nos fez viajar de carro até o Rio de Janeiro, em regime de urgência. Agora, retornávamos a casa que distava cerca de seiscentos quilômetros da capital, S.Paulo. Pernoitamos num hotel da cidade, precisávamos de uma noite confortável. Fomos vencidos pelo cansaço e para evitarmos os riscos que, somados à exaustão, comprometeriam  a atenção ao volante.
         Para racionalizar o tempo, solicitamos que o café da manhã fosse servido no quarto, às seis horas. Tomamos suco e o café, comemos as frutas partidas  e pronto. De repente, peguei um saco plástico e comecei a colocar todo o resto dentro dele: maçãs, bananas, uvas, laranjas, etc. Não satisfeita, em outro, coloquei biscoitos, torradas, bolos e pães, queijos, manteiga e iogurtes.
Meu marido, surpreso, perguntou-me se estava com medo de sentir fome durante o resto da viagem e me garantiu que pararíamos  em algum restaurante, se isto ocorresse. Eu ri.
        - Nada disso. Não estou preocupada. É que na estrada quase sempre tem gente com fome caminhando, sem destino certo. Este café está pago. Tenho certeza de que há alguém esperando por ele.
         Ele sorriu condescendente, estava acostumado com as minhas “esquisitices”.
        Tudo pronto, partimos.
        Sabia que estes andarilhos, muitos “bóias frias”, vagavam pela estrada à cata de plantações. As fazendas agrícolas exploravam o cultivo da cana de açúcar e “absorviam”  este tipo de “mão de obra”, dispensada após a colheita. Depois, sem trabalho, sem recursos, dispersos, seguiam  sem destino, sem horizonte.
        Havia também, um batalhão de alcoólatras perdidos pelo mesmo caminho, resultantes da falta de perspectivas e ainda os enlouquecidos e os viciados, párias abandonados pelas famílias, pela vida, pelos homens, por Deus. De certa forma, era sempre um risco parar o carro e interferir no caminho desses estranhos, mas não seria a primeira vez. Só que era diferente... eu mesma estranhava.
Por tudo isso, esperava o momento exato que minha intuição sinalizava e determinada saberia: é este!
Paciente e curioso, meu marido diminuía a velocidade do carro esperando meu sinal ao avistar algum vulto.
         A viagem transcorria serena. Muitos andarilhos foram apontados.  José já estava aflito:
- Daqui a pouco chegamos e você não acha o seu mendigo!
Mal ele acabou de falar... eu o vi!
Sim! Era ele! Sentado sobre uma grande pedra, com a cabeça um pouco pendida sobre o peito. Era ele!
         Distante, não dava para ver roupas, idade,  cabelos...apenas uma figura delineada em seus contornos, sem cores vibrantes ou detalhes mais visíveis.
          Por cautela, paramos alguns metros à frente, na intenção de atrair seu olhar e percebermos qualquer reação negativa.
           Vagarosamente, ele ergueu o rosto e era tal a suavidade expressa que José baixou o vidro sem temê-lo. Com gestos, pediu que se aproximasse e lhe mostrou o saco de frutas. Lentamente, ele se ergueu. Eu olhava atenta, mas sem apreensão. Ele chegou junto à janela.
-  Boa tarde! Disse meu marido. (Afinal, vencemos a manhã nesse longo percurso).
-   Boa tarde! Ele respondeu com voz doce.
            Era jovem. Idade indefinida. Cabelos lisos e longos. Devia estar sem banho, mas não parecia. A roupa amarfanhada: calça comprida e uma camisa que mais parecia uma túnica. Muito magro!
      Preocupados com a opacidade do saco plástico começamos a descrever o conteúdo:
         - São frutas, pães, biscoitos...
- Olha! Completei! Tem manteiga, queijos, uma caixinha com iogurte! Seria bom que você comesse logo estas coisas pra não
 estragar! As frutas duram mais!
Foi então que ele estendeu as mãos, delicadamente, pegando os alimentos e olhou para nós!
E aquele olhar inesquecível penetrou na nossa alma! Olhando-nos  e sorrindo falou:
- Que sua família seja abençoada e que vocês sejam felizes!
Erguendo uma das  mãos para reforçar sua intenção, completou:
- Boa viagem! Vão com Deus!
         A voz era extremamente terna e o gesto eu reconheci de outro lugar.
         Não sei bem porque fomos, os dois, tomados por uma estranha emoção. Havia tanta ternura e ao mesmo tempo uma grandeza...
         Afastou-se sorrindo, serenamente, olhando para  os alimentos  e nós seguimos até que distantes do seu campo visual... paramos. Era preciso. Só depois de um grande abraço e algumas lágrimas incontidas, a emoção nos permitiu seguir.
         O que foi aquilo? Não sabemos.
         Continuamos durante muitos anos fazendo a mesma coisa em outras viagens. Alguns agradeciam, desconfiados. Havia até quem se recusasse pegar os alimentos.
Muitos, comovidos, agradeciam. Outros envergonhados tentavam cobrir o rosto... Estavam humilhados, porém tinham fome!
         Em nenhum deles, no entanto, a doçura daquela voz, a bênção daquele gesto e a divina majestade daquele olhar!
    zeliadacostamt@gmail.com
     
  


Um comentário:

  1. Que lindo, querida tia Zélia! Saudades imensas de todos vcs! beijo mil, Luciana Noda

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