quarta-feira, 9 de julho de 2014

A CRUZ



                                      
                                     A CRUZ

Minha mãe adoeceu.
A princípio parecia algo transitório, porém a moléstia foi se tornando agressiva e por mais que se usassem os recursos disponíveis na época, a doença não cedia. Os médicos desconheciam a origem e não podiam prever a evolução.
Quando esta tragédia começou, eu tinha quatro anos.
Havia períodos em que minha mãe deixava o leito, parecia estar curada. A vida retomava o curso natural e ela radiante assumia o comando do lar.
Na minha casa havia um quintal, nele, ela fez organizar canteiros. Minha mãe cultivava temperos e algumas verduras. Eu escolhi plantar nos meus, tomates chamados na época de “paulistas”, hoje comuns e tomates “garrafinhas” que eu nunca mais vi, além de rabanetes. Eu gostava de ver os tomateiros carregados, enfeitados de vermelho como arbustos de Natal! Mamãe me ensinou a observar o esforço das plantinhas para eclodir, crescer e a defendê-las das pragas.
Esta observação desenvolveu em mim a compreensão do sentido trágico. Era terrível para as plantas, não ter braços para enxotar os insetos nocivos. Não ter pernas para correr, chutar, se livrar dos inimigos.
Um jardim contornava a casa. Este era território materno. Ela morria de ciúme de suas flores e folhagens.
Plantas compradas no Horto e cuidadas com carinho especial.
Tenho hoje no jardim de minha residência um Antúrio cuja matriz foi plantada por ela quando eu tinha uns seis anos. Acredita?
Eu achava o jardim bonito, porém não me interessava tanto.
Fui alfabetizada por minha mãe num processo indolor. Um espanto para todos. Um quase crime para alguns retrógrados que acreditam que aprender dói. Aos cinco anos li meu primeiro livro. Presente de minha mãe: “Pedrito no Reino da Fantasia”.
Eu fiquei encantada e o guardo até hoje porque me faz lembrar sua felicidade ao me ver ler para o meu pai a doce história de um menino pobre que entra neste reino fantástico. Apesar do sofrimento, seus olhos brilhavam, enquanto meu pai comovido enxugava os olhos. Outras vezes líamos juntas o dicionário. Ela tinha urgência.
- Mamãe por que você gosta tanto de ler dicionário?
- Porque mamãe não vai ter tempo de conhecer muita coisa.
Respondeu - me, sorrindo um sorriso inesquecível.
As visitas queridas não eram mais aquelas tagarelas que vinham almoçar ou jantar.
Nem suas amigas vinham mais lanchar e conversar à tarde.
Eram todas visitas rápidas e tristes, embora tentassem disfarçar a emoção.
À medida que o tempo passava rareavam os momentos saudáveis de mamãe e eu comecei a entender a gravidade da situação. Agora, com nove anos perguntava insistentemente por que minha mãe não ficava boa. Via no olhar do meu pai profunda tristeza.
- Papai, por que mamãe está sofrendo tanto?
Ele me olhou carinhosamente, afagou-me a cabeça e com a sua extrema sensibilidade e doçura começou:
Havia um homem que vivia reclamando da sorte. Todo dia ele olhava para o céu e gritava:
- Deus! Minha vida é uma cruz enorme! Esta cruz é um sofrimento! Por que a minha cruz é maior que a de todo mundo?
Todo dia ele reclamava e clamava a Deus pedindo piedade:
- Deus! Por que não me ouve? Tem pena de mim! A minha vida é uma cruz pesada!
Um dia, Deus resolveu atendê-lo.
- Homem! Estou cansado de ouvi-lo reclamar da vida!Eis aqui o campo das cruzes. Escolha a cruz que quiser para trocar pela sua. Assim, viverá a vida que escolher!
O homem olhou aquele campo enorme. Um espaço a perder de vista. Havia cruzes de todos os tamanhos. Ele andou entre elas, andou, andou, andou até que, de repente, escolheu uma e, então, gritou chamando Deus:
- Senhor Deus!Senhor Deus! Já escolhi!
E ergueu na ponta dos dedos uma cruz tão pequena, mas tão pequena que quase não se via.
Deus ao ouvi-lo aflito chamar perguntou:
- Já escolheu? Que bom! Agora você não reclamará mais. Qual é?
E o homem feliz ergueu a pequena cruz que quase não se via.
Deus ao vê-la exclamou surpreso:
- Essa cruz pequenininha? Ué! Você escolheu a mesma?
Entendeu filha? Todas as cruzes eram maiores que a dele. Mamãe está doente, mas vai ficar boa. Vamos ter paciência. Mamãe nunca se queixa, não é? Ela não quer que a gente fique triste. Temos que mostrar pra ela  que estamos bem. Ela há de ficar boa.
Ela morreu meses depois.
Alguns anos mais tarde meu pai faleceu. Não sem antes me dizer que queria ir embora porque a saudade dela era um sofrimento que não cabia mais e que eu já podia seguir só. Parece que foi ouvido. Neste dia partiu. Era véspera de Natal.
Na missa de sétimo dia, ao me abraçar o joalheiro seu amigo entregou-me uma caixinha de joia. Era um “anel de grau”.
- Ficou pronto.É lindo! Era uma surpresa. Você o receberia na sua formatura. Presente de seu pai.
Mesmo assim, temi trocar a minha cruz.
Meu pai e minha mãe me ensinaram a conviver com a dor sem revolta, a amar a Natureza e a viver em harmonia com a esperança.
       Zelia da Costa/NM/MT
zeliadacostamt@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário