terça-feira, 16 de julho de 2013

AS GEMINHAS



                  
                          AS GEMINHAS 

( Leia o texto “E AI?” antes para real compreensão.)

     Cheguei feliz. Estava carregada de embrulhos: presentes e mantimentos. Com meu dinheiro e mais as doações que ganhara, eu ainda podia comprar o que faltasse. Fui à cata de “seu Inacinho” no ponto de taxi. Embora fosse período de férias, ele me “servia” sem fazer cara feia e gratuitamente e ainda me ajudava a carregar toda “tranqueira” para o meu pessoal. Sorridente o vi de pé ao lado do vovô, um Chevrolet verde, agora verde alface para facilitar a identificação.
- O que é que a senhora veio fazer aqui?
- Ué! Vim trazer comida pro pessoal e para as geminhas!
- Mas agora estamos de férias!
- Eu sei. O senhor acha que nas férias a turma tem comida? Eu vinha na sexta-feira, mas não deu. Vim hoje.
 - Faz assim: deixa as coisas no carro que depois eu levo. Tenho um passageiro com hora marcada. Não dá pra ir lá agora.
- Acha que eu vim até aqui pra o senhor levar as coisas quando puder? Cadê “seu José”?
Seu José era um outro taxista. Um mulato cinquentão forte e generoso que há pouco tempo havia se livrado de um assalto jogando o próprio carro num valão, gritando para os bandidos:
- Eu morro, mas eu mato vocês!
O carro sem direção rodopiou e capotou várias vezes sobre os assaltantes, matando-os. Seu José saiu ileso.
         Na polícia, soube que os marginais mortos eram assassinos procurados por serem entre outros crimes, especialistas em matar motoristas de táxi, depois de assaltados. Assim, não deixavam testemunhas.
Quando lhe perguntei de onde veio tanta coragem, respondeu-me:
- Não foi coragem. Professora. Trabalho desde criança. Juntei dinheiro com sacrifício. Deixei de comer muitas vezes pra juntar um dinheirinho pra comprar minha licença e um carrinho velho pra por na praça. Hoje tenho família, filhos estudando, minha casinha. Olhei aqueles safados pelo retrovisor: arrumadinhos, metidos a valentes. Pensei:
- Se eu quisesse eu podia ser um deles. Se eles quisessem, eles podiam ser como eu. Deus que me perdoe! Eu senti que eles não iam me deixar vivo! Eles me odiavam! Mas eu também odiei eles. Não quis que eles vencessem. Pelo visto, Deus também não quis.
 Este era seu José.
Quando eu disse a seu Inacinho que ia pedir a seu José pra me levar, ele resolveu “abrir o jogo”. Sabia que o amigo não me negaria o favor.
- Hoje não vou deixar a senhora ir lá.
- Posso saber o porquê? Perguntei ironizando e logo me arrependi ao ver seu rosto ser tomado por uma expressão dramática. Sem me encarar e com a voz embargada, respondeu-me:
- Tão fazendo o velório de uma das geminhas.
- Como velório?
- Uma das geminhas morreu. Deixa as coisas no carro. Pode confiar que eu levo. Não queria lhe contar. Sabia que ia ficar assim, triste. A senhora chegou toda contente...
- Eu quero ir lá.
- Fazer o quê?
- Eu quero ir lá!
- A senhora é teimosa. Aquilo lá já é triste, normalmente. Hoje tá de chorar mesmo. Não vai lá não. Eu levo tudo direitinho. Prometo!
- Não! Eu tenho que entregar coisas pra aquela mãe.  Trouxe roupas também e alimentos que tenho que explicar como fazer.
- Então deixa na mala do carro. Volta outro dia. Vem amanhã...
- Se o senhor não me levar... eu pego outro carro. E aí?
- Vai ser teimosa assim, longe. Eu tentei. Entra aí, professora. Todo mundo aqui no ponto apostou que eu não ia conseguir. A turma conhece seu jeito. Criatura difícil. Vamos lá! Tá avisada que vai ser duro! Até eu chorei! Vai se arrepender.
         Naquela manhã a Estrada dos Palmares parecia soturna. Sem borboletas a atravessar o caminho. Não vi, mas os pássaros que ouvi, não cantavam.Era o som piado de um lamento. Com o coração apertado, o peito doía. Eu chegara contente, feliz com os brinquedos, roupas e alimentos. Carregava tanto peso que pensei não conseguir chegar. E agora isso. O impacto da notícia me remetia a outras épocas de surpreendentes e tristes momentos. Ao mesmo tempo fui tomada por uma trágica apreensão porque dependendo da causa a sobrevivente corria risco de morrer também.
         Agora, tudo que levava parecia ter o peso e o volume multiplicados. Um silêncio ensurdecedor pesava também. Se não fosse a ajuda do meu amigo motorista eu não conseguiria chegar, mas chegamos.
       Sobre uma tábua sustentada por dois cabos toscos de madeira, enrolada num papel de saco de ração, um volume ralo e difícil de identificar a primeira vista, repousava. A mãe ao me ver ofereceu o pedaço de tronco onde estava sentada. Aceitei logo porque as pernas bambas me impediam negar. Nada que eu possa dizer a você agora descreverá a cena. Como descrever o vazio? Dez crianças secas sentadas no chão duro de terra e o mais seco olhar me fitava sem dor, sem esperança, sem ilusão. Perguntei a ela pelo marido. Respondeu-me que foi em busca do capataz arranjar dinheiro para comprar um caixãozinho. Seu Inacinho tomou-me os pacotes e colocou todos num canto. Eu não sabia o que dizer. Eu não sabia o que fazer.
         Era eu, agora, quem precisava de ajuda.

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