O MAGO
Eu o conheci já velho. Nunca consegui imaginá-lo jovem. Nas
estórias infantis, as bruxas permeiam as narrativas. São mulheres horrendas.
Criam situações perversas e provocam angústia e sofrimento. Todos querem se
livrar do fardo da existência de um ser cuja presença é constante ameaça ao bem
estar. Neste caso não! Este era um velho querido, amado por adultos e crianças.
Se o considero um bruxo é justamente pelo fascínio que exercia sobre todos.
Nunca se soube onde morava. Sua origem
era um mistério. Ele, simplesmente, surgia com seu sorriso luminoso e seu olhar
penetrante, mas não inquisidor. Abria os braços perfumados por um cheiro de ervas
do mato e um abraço caloroso envolvia um por um, na ternura da sua presença.
Homens, mulheres e crianças se abrigavam naquele momento de mágica doçura.
Ninguém conhecia sua história. Ninguém sabia onde morava, de
onde vinha. Nem os mais velhos que poderiam ser contemporâneos sabiam como ele
era quando jovem. Ninguém se lembrava dele criança ou adolescente.
Ele surgia e desaparecia sem vestígios!
Havia quem dissesse que sua família
morrera e ele crescera só. Havia os que garantiam que ele viera de outra
cidade, que abandonara sua casa e saíra pelo mundo. Enfim, muito se dizia, nada
se provava e ninguém ousava indagar. Nem as crianças, sempre irreverentes, se
interessavam por saber, embora alguns adultos já tivessem tentado, há tempos, alimentar a chama da
curiosidade infantil.
Bem, certo é que ele existia com seu olhar, seu sorriso,
seus abraços e sua voz e era, imediatamente, cercado. As crianças queriam ouvir
suas histórias. Os adultos queriam contar suas histórias. Para estes, ele se
tornara uma espécie de mago. Muitos ansiavam por sua visita. Contavam seus
males - angústias, problemas domésticos e financeiros, suas queixas de saúde,
etc. Os mais ansiosos queriam previsões.
Ele falava pouco. Ouvia muito. Sorria sempre. De quando em
vez fechava os olhos, comovido. Logo, os abria enternecido. Pondo as mãos sobre
os ombros ou sobre a cabeça de quem o buscara, sussurrava algo que provocava no
interlocutor uma expressão de conforto e gratidão e os, agora confiantes passos,
se afastavam rumo a esperança.
Tudo hoje aguçava minha curiosidade. Afinal, quem era ele?
Minha ansiedade não era bem vista. Cada vez que ousara investir
no assunto era eu a submetida a verdadeiro inquérito. Todos queriam saber o
porquê da minha irreverente e extemporânea curiosidade. Era como se,
desvendado, o encanto fosse quebrado e algo profundamente lamentável ocorresse.
Havia uma espécie de elo de proteção a envolver em sombras aquela existência
singular. O temor pela minha falta de sensibilidade e esta súbita insistência
numa pesquisa que não convinha, tornou-me personna
non grata. Ninguém entendia porque uma jovem nascida e criada ali,
convivendo com todos, de repente resolvesse romper a ordem natural das coisas. Como estivera um tempo estudando fora, era
para todos sacrílega minha súbita investigação. Irritou-me bastante a princípio
ver como, pouco a pouco, fui sendo relegada por vizinhos, amigos de infância e
até parentes. Irritada, magoada mesmo, entendi que seria mais inteligente conter,
por um tempo maior, minhas intenções e tentar me aproximar contendo a
ansiedade.
- Está cansado? Hoje o calor está castigando a gente!
Ele
me olhou sorrindo e sacudiu a cabeça concordando. Logo, as crianças nos
envolveram aos saltos, pedindo-lhe uma estória. Ele foi para um canto,
sentou-se sobre uma pedra como num trono, sob a majestosa sombra de um milenar jequitibá.
Todos se aninharam a sua volta e ele começou:
- Havia um homem que vivia aqui perto. Bem próximo de
vocês. Acho até que algum morador mais velho daqui deve saber quem é, mas a
alma dele vivia longe... muito longe...
- Onde?
- Onde? Nem ele sabia.
- Como ele era?
- Ele não era mau. Era infeliz! Ele não via cores. Não
sentia os cheiros... Não se encantava com as formas, com os desenhos que a
Natureza traça e que suavizam vidas. Existem desenhos na Natureza que inspiram e orientam a nossa
inteligência e sensibilidade. Vocês já observaram as nuvens quando se acumulam
e formam figuras que nós imaginamos conhecer. É lindo!É divertido e alivia a
alma. Rufo não sorria. Rufo era seu nome.
- Ele era doente?
- Sim. Doente da alma!
- O que é alma?
- Por que ele não via cores?
- Deve ser ruim não sentir cheiro, nem perfume.
- Ele não olhava para o céu?
Pacientemente, o velho sorria!
Esperava que contivessem as indagações, agora mais importantes que o enredo que
ele estava prestes a desenvolver.
Percebi o quanto devia a esses
momentos e também que o tempo em mim tinha desenvolvido um físico adulto, porém
o mago se mantivera com o mesmo
aspecto de quando o conheci ainda menina. Estranho... Esta constatação fez
acometer súbito mal estar e o frio que me percorreu a coluna parece tê-lo
atingido porque ele se ergueu e fitou-me, severamente, como se repreendesse a
ousadia da minha silenciosa observação. Depois, sentou-se novamente e sorrindo
respondeu:
- Alma? A alma é a razão da vida! Ela faz
vocês levantarem de manhã.
- Quem me faz levantar é minha mãe!
Minha mãe é alma?
Todos riram.
- Sua mãe o desperta, o acorda, mas se
sua alma deixasse de existir você continuaria deitado. Não acordaria!
- Nunca mais?
- É.
- E aí?
Logo, alguém interrompeu:
- Então é isso! Quando a alma vai embora a
gente morre!
-
Não! Respondeu o velho com um sorriso benevolente. A gente não morre.
- Quando
a alma da minha avó foi embora... enterraram ela!
-
Enterraram seu corpo. Sem alma, ele não tinha mais serventia.
Houve
um burburinho nervoso.
- Bem, vou indo... vocês... parece, não estão
interessados mais na história!
Foi um
clamor geral!
- Não! Por favor, continua! A gente fica
quietinho! Só uma coisa! Uminha, só!Um garoto lá na escola atirou uma pedra num
gato. O gato não estava fazendo nada. Só estava passando.
A
professora ficou brava. Disse que ele era um menino mau.
Que
aquilo era coisa de gente sem alma! Gente desalmada! Mas ele estava vivo e
acordado! Como podia ele estar sem alma?
Pode
gente viva viver sem alma? Gente desalmada é gente ruim? É o quê?
- Não! É gente que
está com a alma doente! Assim como seu corpo fica doente... sua alma também
fica! A alma dele não o deixou. Apenas, por alguma razão adoeceu! Ele pode
tratar dela e curá-la.
- Tem remédio pra isso? Pra curar alma doente?
- Tem sim!
- Vende onde? Eu conheço uma menina sem alma!
- Se vocês deixarem eu continuar...
- A gente deixa! Gente! Cala a boca, deixa o “vô” contar!
- Pois bem! Continuando. A alma de Rufo estava doente!
- As cores e os aromas, os cheiros das coisas... continuavam
existindo, mas ele não era capaz de sentir, nem de ver! Por causa disso ficava irritado
com tudo! Se ele via um pássaro cantando... ele não se encantava e sim
reclamava porque o pássaro ia sujar em seu quintal! Se passava por um jardim...
ele destruía as flores, porque elas iriam atrair borboletas com seu voejar
irritante, besouros e um número infinito de desprezíveis insetos. entre eles as
abelhas que só servem para picar!
-
Mas as abelhas fazem mel!
- Em nada ele via sentido, nem registrava a
importância de toda a vida natural! Tudo estava contra ele, assim pensava!
Sua
alma doente não tinha espaço para armazenar as belezas!
O belo é a primeira função da alma! Ver o
belo! Descobrir a beleza é vital para a felicidade!
Mesmo
quando o cheiro das coisas é desagradável, nossa alma está presente, indicando
formas de torná-lo especial como um alerta, porém se você tem sua alma
doente...você se torna incapaz de praticar uma ação que resolva o problema, de
criar uma conexão criativa! Você não se importa! Mesmo sabendo que, talvez,
você seja responsável pela causa! Jogar lixo na rua, matar, roubar, devastar
florestas, ignorar as necessidades dos outros… São muito comuns atitudes
nocivas em pessoas que tem a alma enferma. Rufo era doente, sofria e não sabia
a causa! Estava infeliz! Quem de vocês poderia ajudá-lo? Por onde começar?
Eu
estava pasma! Então, foi assim que o velho pôs na minha cabeça a
responsabilidade da minha existência? Viver é um compromisso real com todas as
outras vidas.
Outra
vez seu olhar me encarou! Eu me assustei. Parecia que ele lia os meus
pensamentos! Desviei meus olhos como desviei há tempos... minhas esperanças!
- A alma tem luz! Ela ilumina !
- Ela tem fogo, vô?
- Tem! É um fogo que
não queima, só clareia, ilumina, mas como todo fogo pode apagar... a alma de
Rufo escureceu! Por isso ele estava doente.
- Como
a gente pode acender a luz da alma?
- Como vocês acham que isto pode acontecer?
- Não fazendo coisas erradas?
-
Não fazendo maldades?
- Vocês entenderam a pergunta? O que é
necessário fazer para curar a alma, para acender a sua luz, novamente? Vocês
disseram o que não se deve fazer. Eu quero ouvir o que se deve fazer. O que
Rufo deve fazer pra encontrar a felicidade?
- Ser generoso! Respondi aflita.
Todos
os olhos se voltaram pra mim! As crianças consideraram uma intromissão. Afinal
o momento era delas!
Ele, docemente, interferiu dizendo:
-
Este é o caminho que alguns abandonam. Quando nós ajudamos alguém... o bem que
fazemos acende nossa alma e a felicidade
enche nossa vida de cores e perfumes e formas. Rufo se perdeu no caminho. O que
Rufo poderia fazer para ser feliz?
- Plantar
flores!
- Deixar as borboletas e as abelhas pousarem!
- Recolher o lixo deixado por alguém!
- Salvar um animalzinho!
-
Ajudar um mendigo!
-
Olhar a Lua! É linda!
O velho abriu um largo sorriso!
- Agora sim! Podemos ajudar Rufo!
O velho sábio encantava e com simplicidade
conduzia quem o ouvisse, pelas sendas da vida! Que importava sua origem e o
mistério de sua existência se a alma dele era como um facho de luz irradiante a
acender almas pelo caminho!
Às vezes, quando sou tomada por uma desilusão,
quando a decepção se aprofunda e sinto desvanecer a minha fé no ser humano,
percebo que a chama de minh’alma tremula e se retrai. Rapidamente, respiro
fundo, penso no que posso fazer para alimentar a chama e agradeço comovida a
generosidade do velho feiticeiro!
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