sexta-feira, 29 de junho de 2012

IGOR



                      IGOR

Antes de conhecê-la fui conquistada pela grandeza da sua história. Eu tenho muita sorte! Se a vida me envolveu em algumas tramas dolorosas, também foi capaz, tenho que reconhecer, de me oferecer oportunidades de conviver com pessoas cuja dimensão do caráter e pureza de amor enobrecem o espírito humano.
Minha amiga Rita é professora de piano, proprietária do Instituto Villa Lobos, em Adamantina, um Conservatório de Música que dirige com carinho, sensibilidade, dedicação e competência há muitos anos. Um dia, ela veio me contar ter sido procurada pela mãe de uma criança com Síndrome de Down. A mãe havia, tempos atrás, pedido um favor especial - gravar os sons dos instrumentos de sua escola para o filho começar a identificar a sonoridade de cada um.
- Zelia, esta mãe é uma mulher incrível! Imagina que o Igor nasceu com um problema que prejudicou seus músculos e que dificilmente ele poderia andar. Você acredita que ela deixou apenas a mesa no centro da sala de jantar e começou a “engatinhar” em torno dela com o filho? 
Aos poucos, o menino foi recuperando os movimentos e hoje, aos três anos, ele anda perfeitamente. Uma amiga comum me disse que se somasse a extensão percorrida, este trabalho paciente chegaria a quilômetros, mas que tinha sido realizado com tanto carinho e critério que o menino se divertia sem perceber o esforço.
         Foi assim que tomei conhecimento da existência de Igor.
         Certa vez, Rita me falou que a mãe de Igor estava muito feliz porque o menino tinha conseguido distinguir alguns sons: sino, campainha, buzinas etc. Agora, ela queria o registro de instrumentos musicais, mas estava encontrando dificuldades.          Para começar ela gravou, então, no Conservatório pequenos trechos melodiosos de piano, flauta, órgão e violão. Rapidamente, o menino foi capaz de identificá-los. Diante do resultado tão animador ela procurou Rita na busca de sons de outros instrumentos. Rita comentou comigo. Lembrei-me que meu amigo, o Maestro Júlio Medalha era, na ocasião, Diretor e Regente da Orquestra Sinfônica de S. Paulo. 
         Liguei para ele. Contei-lhe a história e perguntei se haveria possibilidade de atender à mãe de Igor. Ele tornou a me telefonar dizendo que conversara com os músicos e sorridente me informou o dia de ensaio que ela poderia comparecer.                       Comuniquei a mãe de Igor. Ela ficou feliz e grata pelo meu interesse. Estávamos emocionadas. Quando ela retornou da viagem contou-me feliz:
        - Todos, o Maestro Júlio Medalha e os Músicos foram extremamente generosos e solidários. Todos queriam que eu gravasse seus instrumentos e como haviam vários instrumentos repetidos- violinos, trombones, etc.,eu pude gravar sons resultantes de diferentes técnicas o que produziu notáveis variações. Agora tinha o registro dos sons de uma orquestra sinfônica!
     Harpa, oboé, violino, trombone, fagote, pratos, etc. Serei eternamente grata ao maestro pela nobreza de sua compreensão e carinho e aos músicos pela paciência e generosidade.
          O tempo passou. Igor estava com quase cinco anos quando sua mãe me procurou. Queria matricular seu filho no Pinguinho de Gente, minha Pré-Escola.
        - Infelizmente não poderei atendê-la. Até gostaria, mas não tenho professor especializado nesta área.
         - Eu tentei a APAE, mas são muitas crianças e...
         - Eles são especialistas, retruquei.
         - Eu sei, mas você também é.
         Rimos juntas. Ficava difícil recusar a quem tinha experiência em milagres, negar a possibilidade de fazer acontecer mais um.
          - Espera. Eu preciso de um tempo. Um tempo para eu
pensar “como”, quando, se...
          Ela foi embora feliz.
          Conhecendo sua tenacidade, sabia que não desistiria.

          Havia uma pracinha próxima à escola. Nela um pequeno lago exibia uma delicada ponte de madeira com toque oriental. De resto, canteiros bem cuidados e árvores antigas e floridas sombreavam os bancos, também de madeira, dispostos calculadamente pelo espaço. Os canteiros coloridos por flores e pequenos arbustos e grandes árvores atraíam as lindas borboletas, flores aladas a encantar minhas crianças. Os pássaros não economizavam surpresas nas cores e nos cantos. Eu gostava de ir com os alunos aquele lugar depois da merenda. Gostava de vê-los sentados ao redor enquanto contava histórias. Eles se encantavam com as descobertas de minhocas, caramujos... Eu queria que eles desenvolvessem a observação e lhes garantir a oportunidade de entender que a terra que se pisa tem vida...
      A terra é viva!
     Foi ali, que uma criança me fez ver o caminho.
    - Olha só! Esta árvore grandona e esta tão pequenininha!
    - A Natureza é assim. Olhem quantas plantas diferentes! Todas convivendo no mesmo jardim. No mesmo espaço. Vou fazer um desafio:
     - Quero que vocês me mostrem duas folhas da mesma planta que sejam iguais! Iguaizinhas: mesmo tamanho, mesma cor, mesmo feitio, mesma idade!
  Entusiasmados entraram no jogo.
  Depois de um tempo, já com os ânimos arrefecidos, chegaram à conclusão que embora tivessem origem na mesma planta havia sempre um detalhe que impedia ser igual.
 - A Natureza é sabia. Olhem pra nós. Temos olhos, boca, cabelos.
Parece que somos iguais. Olha que maravilha! Cada um de nós é único! Cada um de nós é um milagre da Natureza! Somos, cada um, exemplar sem cópia!Agora olhem o jardim. Essa plantinha tão pequena protege as raízes expostas dessa árvore grande, livra-a de insetos que a fariam adoecer e até morrer! Neste jardim cada planta também é original e vivem todas no mesmo espaço e cuidando umas das outras. Todas são importantes, necessárias, preciosas. Todas tem uma razão para existir. 
      Olhem cada um de seus coleguinhas: 
      - Vejam que maravilha!
      -Vocês estão vendo uma pessoa única! 
      -Ninguém é igual a ninguém!
      - Cada pessoa é original, importante. É um presente e juntos somos um grande milagre. Cada um de nós tem qualidades especiais. Juntos podemos fazer coisas maravilhosas.
     Se eu tirar uma plantinha dali, ela é capaz de morrer. Ali, junto com todas, ela está feliz e segura. É preciso proteger a Natureza.
    Vamos dar um grande abraço nas árvores. Eu garanto que elas vão ficar felizes.
    A Natureza durante tempos e tempos construiu este trabalho de identidade e, é um crime contra Ela querer que todos sejam iguais. Nós precisamos ser dignos deste milagre. Compreender isto nos faz merecer a vida!
    A Natureza é generosa! A gente precisa aprender com Ela!
  Contei pra eles, ali mesmo, que estávamos para receber um novo colega e expliquei:
- Vocês viram que há folhas maiores, menores... Mas todas são folhas. Isto é natural. Não há nada de especial nisso. Elas são todas folhas. Vocês concordam?
Às vezes, uma plantinha precisa de mais cuidado, Isto não a torna especial porque ela já é única, como todas as outras.
   - Igual à gente! Alguém disse.
   Isso mesmo. Igual à gente!
- É claro que eu vou precisar do apoio de todos vocês. Sabem por quê?
 Porque ele nunca estudou em outra escola. É como esse jardim, vocês são minhas flores. Eu sou essa árvore grande, mas preciso de vocês minhas plantinhas para me ajudar a ajudar Igor. Igor é o nome dele. Posso contar com vocês? Ele precisa de amigos como vocês. Amigos especiais, como nós.. Precisa do carinho, como vocês, eu, todos nós. E aí?

    Se você não acredita que eu falei desta forma e que eles entenderam perfeitamente é porque você está ano-luz distante da inteligência e da sensibilidade das crianças. Elas não só entenderam como abriram espaço há mais de vinte anos, para minha primeira experiência de integração de crianças com Síndrome de Down nas classes comuns.  
   Minha experiência com alunos de três, quatro, cinco e seis anos me levou a concluir que as crianças nascem com possibilidades de inacreditável capacidade para aprender, porém ingressam neste modelo educacional do país e vão “emburrecendo”. Quando eles estão quase estúpidos, aí, eles fazem vestibulares. Aqueles que conseguem escapar deste rebanho ou são dotados de inteligência privilegiada ou deram a sorte de frequentar uma boa escola ou encontraram mestres raros,escapam!
    Quando Igor chegou eu não o coloquei, imediatamente, na sala de aula. Precisava conhecê-lo. Conhecer sua reação naquele ambiente estranho cercado de adultos e crianças que não eram de sua intimidade. Para que se integrasse com naturalidade ele merendava junto e participava da recreação. Duas semanas, o tempo necessário para sua adaptação.
Logo chegou Marina. Ela já frequentara outra escola.
Quando Igor e Marina começaram no Pinguinho de Gente houve uma debandada de alunos. Os outros pais não admitiam a convivência daqueles retardados com seus filhos. Fiquei em pânico. Os pais das duas crianças me procuraram querendo desistir porque temiam o tamanho do meu prejuízo.
- As crianças tiveram maturidade e solidariedade para entender a importância desta convivência. Esses adultos preconceituosos e ignorantes ainda vão se envergonhar. Os dois ficam.
    Soube que os pais de Igor e Marina foram às residências destes alunos pedir que retornassem porque eles não queriam me prejudicar.
    Fiquei muito aborrecida quando soube disso depois. Eu já tinha decidido que podiam sair todos porque eles ficariam. Questão de honra.
  Alguém deu “parte” da minha decisão de “misturar” crianças retardadas com crianças normais e recebi, de repente, a visita de um psicólogo para observar o comportamento e a convivência do grupo.
     Deixei o “doutor” à vontade. Pediu-me que indicasse as crianças. Percebi pela sua expressão que não aceitava a situação.
- Descubra! Eu posso lhe garantir que as duas crianças estão neste ambiente. Sorri debochando.
  Como estavam extremamente atentos, envolvidos na atividade e as mesas eram circulares, sentados e de costas, ele não conseguia identificar os dois. Só quando os chamei pelos nomes e eles atenderam é que ele os reconheceu.
 Eles sorriram felizes e acenaram e voltaram à atividade, motivo de seu interesse no momento. Eu os interrompi:
- Temos visita. Vamos lhe dar “boas vindas”?
 Sorridentes todos ficaram de pé e cantaram e encantaram. Eram tão pequenos...
- É Professora. Não sei como consegue, mas consegue. Desculpe a minha visita inesperada. Não vou mais importuná-la. Foi muito bom vir aqui.
  Senti que estava envergonhado, pois, chegara cheio de empáfia.
Ao se despedir me contou a verdade.
 - Sabe esta história de agregar todas as crianças desta forma tinha tudo pra não dar certo.
-É. Mas deu. As pessoas não ajudam, mas gostam de atrapalhar.

 Com o tempo algumas crianças retornaram. Tinham saudades. Ficaram chorosos, outros agressivos. Alguns passaram a dormir mal. Os pais foram vencidos e eles estavam de volta.
   Depois de Igor e Marina, chegaram mais três.
  Um dia a mãe de Igor me procurou chorosa:
- Ah! Professora! Meu marido foi nomeado para Dourados. Fica em Mato Grosso do Sul. Estamos tristíssimos porque Igor vai muito bem. Ele adora a escola e está quase lendo.
- Ah! Professora, essa integração com as outras crianças foi muito benéfica. Ele canta, diz versos, mostra os trabalhinhos pra todo mundo. Suas pinturas são inacreditáveis. Ele tem prazer em vir e falar de seus amigos, dos passeios, brincadeiras, da bandinha... sou muito grata a todos. Levou-nos para conhecer a árvore que plantou na cidade. Disse que é dele. Ele tem que protegê-la.
- Você conhece a nova cidade?
 - Não, mas vamos mudar logo.
Fiquei muito triste, além do mais, Igor era o principal “tambor” na bandinha.
   O tempo passou e um dia a mãe de Igor foi me visitar. Notei que estava feliz.
 - Professora, desculpe interromper seu trabalho, mas precisava lhe falar.
- Como vai Igor?
 - Quando cheguei a Dourados fui logo procurar uma escola e pra minha surpresa havia uma pré - escola com o mesmo nome da nossa – Pingo de Gente! Acredita? Pingo de Gente! 
   Entrei para conhecer. Fui recebida pela Diretora que era a dona e foi logo me explicando que fazia um trabalho diferenciado porque como tinha um filho com síndrome... Ela acreditava nos benefícios da integração para todos  e era este o sistema que oferecia. A senhora acredita? Eu fiquei sem fala. Ela soube que eu vinha aqui e mandou cumprimentá-la pelo incrível sucesso de Igor. Ele já está lendo. É um menino alegre, cheio de amigos, porém sente muita saudade. Pediu que lhe desse um grande abraço e muitos beijos.
 Ah!Adora música!
  Eu estava sem fala e chorando. Outro Pinguinho de Gente...em Mato Grosso do Sul!
 Hoje esta integração tem a garantia da lei.
 Agora me diz:
Tenho ou não tenho razão pra acreditar em milagres?

Um comentário:

  1. Cloro que tens razão em acreditar em MILAGRES.
    Pessoas como a senhora são um MILAGRE!!!!
    Beijos TE AMO.

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