terça-feira, 6 de março de 2012

SOL E CHUVA! CASAMENTO DE VIÚVA!


   
Ela chegou tímida. Trazia pela mão uma criança assustada a olhar tudo com seus grandes olhos curiosos.
- Eu queria falar com a Diretora da Escola.
- Pois, não. Sou eu mesma.
- Queria matricular minha filha...
- Aguarde, por favor. A Secretária já vem atender.
- Não! É que eu preciso conversar com a senhora antes!
- Ah!... Ela pode lhe dar todas as informações.
- Minha filha é deficiente auditiva!
Antes que eu dissesse alguma coisa, a bela jovem mãe foi “disparando”:
- Eu sei que a sua Escola não atende crianças com deficiência auditiva, mas não há aqui na região nenhum outro lugar que se disponha a fazer esse tipo de trabalho.
- Eu não posso fazer o que a senhora está me pedindo. Não sou, nem tenho Professor especialista nesta área.
- Eu fui até a APAE, mas eles disseram que não podiam.
- Eu também não posso! E não devo!
 - Eu não sou desta cidade! Se a senhora deixar que ela frequente... Eu a trarei todo dia!
  - Aqui existe Pré-Escola Municipal! Vá até lá... Converse com elas!
  - Já fui! Elas rejeitaram minha filha!
  - Veja bem! Eu não estou rejeitando a criança!
  Neste momento, chegou Patrícia.
  Patrícia era minha aluna. Andava com auxílio de uma  prótese, pois, fora vítima da “Paralisia Infantil” que lhe deixou sequelas graves. Ela veio e me deu um “abração”, seguindo e se movendo, vagarosamente, para o interior da escola.
  - Esta criança tem três anos, eu sei, disse-me a mãe  aflita! Foi a mãe dela quem me encorajou vir até aqui. A Escola Municipal também recusou a matrícula desta menina.
  - Eu sei. Patrícia é muito novinha, mas a mãe dela me  implorou que a matriculasse porque a menina estava ficando muito solitária e deprimida! Todo dia ela chega feliz como quem vem a uma festa! Não me arrependo!
  - A senhora não vai se arrepender se ficar com minha filha!
  - Presta atenção! É uma situação diferente! Há no caso uma exigência que foge do nosso alcance. É preocupante!
  - Aqui na região não existe fonoaudiólogo! O  especialista que nos atendeu disse que ela precisa conviver com outras crianças logo. Isso ajudaria muito na sua evolução.
  - Tenho medo de prejudicar sua filha! Nós não estamos preparados para este atendimento específico.
   A mãe começou a chorar! Era um choro angustiado.
   Eu fiquei comovida.
   - Tudo bem! Vamos fazer uma experiência! Reza para dar certo!
   Assim, recebi Marta!
   Se você costuma ler este blog, sabe que o primeiro aluno surdo-mudo que eu tive sob meus cuidados foi Luís e a narração desta aventura se intitula “Quem Canta”. Luís tinha quatorze anos. Quase um rapaz!
   Marta tinha quase quatro anos! Parecia ter muito menos! Voltou no dia seguinte já de uniforme. Irrequieta, pegava os brinquedos sem se deter em nenhum. Chegou com um aparelho em cada ouvido e a recomendação de sua mãe:
 - O “médico de São Paulo” disse que ela tem audição mínima em um dos ouvidos. No outro, a percentagem é quase nula. Precisa usar os aparelhos sempre. Só que ela tira e, aí, perde tudo. Será que se a senhora pedir... ela fica com eles?
   Assim que a mãe se afastou, Marta retirou os aparelhos!
   Com o aparelho dela nas mãos, perguntei às crianças quem queria ficar com eles. Foi um “deus nos acuda” todo mundo queria experimentar a novidade!
   Ao ver o tumulto causado e os braços estendidos pedindo, Marta se desesperou. Tomou-os das minhas mãos e os colocou de volta nos ouvidos. Nunca mais tive problemas com isso.
   Não foi, certamente, uma forma pedagógica, mas no caso “os fins justificavam os meios”.
   Marta foi, aos poucos, se acomodando com o ambiente e as outras crianças com ela.
   No início, todos faziam perguntas a respeito. A curiosidade era grande. Não entendiam como pode uma pessoa não ouvir os sons da vida. Fizemos algumas experiências, algumas dramatizações e a solidariedade despontou com nobreza e generosidade.
   E eles eram tão pequenos...
   Saíamos muito a pé pela cidade. Visitávamos mercados, emissoras de rádio, feiras, o Quartel do Corpo de Bombeiros, etc. Todos sabiam – Marta não ouve buzinas, nem ruídos de alerta quaisquer – era preciso, portanto, estar atentos para evitar riscos.
- Vamos atravessar!
   Mesmo com as professoras e auxiliares cuidando de todos, um aviso infantil era sempre ouvido:
- Cuidado com a Marta!
   Durante um tempo aceitei suas condições. Qualquer solicitação sua era expressa por mímicas, decifradas com ansiedade por todos. Um dia, dada a minha absoluta falta de competência, resolvi que seus gestos não bastavam. Ela teria que emitir um som. Qualquer som!
   Dona Maria José  era a responsável pelo refeitório.
- De hoje em diante, dona Maria, se Marta não emitir um som, qualquer que seja, um grunhido, um berro, qualquer som. Você não atenderá.
- Isto é maldade, Professora!
- Nem água, dona Maria, você dará, se ela não expressar um som qualquer!
   Não comentei minha atitude com sua mãe! Não era uma decisão simpática.
   Marta, a princípio, ficou bastante irritada porque esta ordem também foi comunicada às crianças.
- Se ela quiser um brinquedo, um lápis, qualquer  coisa, só atendam se ela emitir qualquer som. Qualquer som, acompanhado ou não de gestos, será atendido. Só gestos, não!
    A irritação de Marta cedeu pouco a pouco. Logo se adaptou e sorria, quando articulando alguns sons via que as crianças traduziam e vibravam como num jogo de acerto:
- Ela está ”dizendo” que quer mais biscoitos!
   Eles explicavam já, com certa irritação, quando alguém parecia ter dificuldade de compreensão!
   Agora, ela ensaiava cantar as músicas dos “brinquedos cantados”, as canções de “Páscoa” e do “Dia dos Índios”. Comovida, eu ouvia aqueles sons embolados e me lembrava de Luís, o meu menino pobre, a minha primeira experiência feliz com um deficiente auditivo.
   Você acredita em “milagres”? Eu acredito e não estou só! Einstein disse:
-“Quando nada se percebe... Está acontecendo um milagre!”
   Um dia lindo de Sol. Céu azul. De repente, surge uma nuvem. Chove!
   Sempre, desde criança, fui encantada com este cenário de Sol e Chuva, concomitantes.
   A gente até cantava:
- “Sol e Chuva – casamento de Viúva!”
   Repetia até a exaustão este mote. Até enrouquecer ou até que a chuva parasse. Ficávamos ”ensopados”. Sabíamos que nossas mães se aborreceriam, mas era irresistível.
   Não sei... Talvez esta memória ou, quem sabe, movida por um desejo incontido e inexplicável de compartilhar tal magia, impelida pela força de um milagre, saí em busca de Marta! Tomei-a no colo e corri para o quintal.
   Eu, com ela no colo, gritava e rodopiava numa euforia desenfreada! Fazia calor, a chuva caía e escorria por nossos rostos, cabelos...
   Estendi um braço e apontando para o céu gritei:
- Chuva Marta! Sol e Chuva! Chuva! Chuva!Chuva!
   Eu rodopiava com ela que rindo, de bracinhos abertos, jogava a cabeça para trás em êxtase!
- Chiu...chiu...fa...! Chiu...fa! Chiu...fa!
  E ria , e ria e ria!
  Eu ria e chorava e apontava o Sol e bebia a chuva e ela imitava!
- Chuva! Querida! Chuva!
- Chu...fa...! Chu...fa! Chufa!
   Sempre no meu colo voltamos rindo! Dona Maria  correu com as toalhas. Enxuguei e troquei a roupinha encharcada desta nova Marta, de olhos brilhantes e sorriso inesquecível, que queria contar pra todo mundo sua experiência formidável.
   Não foi Mamãe. Nem Papai, nem Vovó... a primeira palavra que Marta balbuciou. Foi CHUVA!!
   Contei pra sua mãe que ela falou - chuva!
  Mesmo que eu não contasse ela saberia porque  Marta não dizia outra coisa. O que, só agora, estou descrevendo é como se deu o milagre!
   Depois deste dia, Marta ficou “exibida” porque vivia ensaiando novas palavras e “cantava” com mais desenvoltura.
   Sei que hoje ela fala, normalmente. É Pedagoga! Excelente Professora!
   Encontrei sua mãe, certa vez. Enternecida me contou
  estas notícias e apontou para o carro. De lá, saiu uma moça alta e muito bonita!
- É Marta! Marta sabe quem é essa?
  A jovem veio a meu encontro. Beijou-me, deu-me um longo abraço!
  Comovidas, num soluço, ficamos em silêncio!
   Um silêncio que gritava! Era tão forte seu som... que nos despedimos sem dizer palavras!
 

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