quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

                           ERA UMA VEZ... UM HERÓI!

                Era um dia qualquer, mas ele se tornara especial. Meu avô nunca permitiu que os dias se fizessem comuns. Ele nos visitava sempre e se tornou inesquecível personagem que me acompanha desde minha infância. Era um velho alegre, de humor irradiante no seu gestual, exagerado pela doçura de sua sensibilidade rara e pela gargalhada cujo contágio não obedecia limites nem na forma, nem no efeito. Assim, conversar com ele, ouvir suas histórias... Era ingressar num universo de mágica e incomum experiência.

               As crianças da minha rua disputavam "lugar" quando ele chegava. Havia uma competição para "subir"sobre seus sapatos e, assim, fazer o percurso até minha residência, usando os pés de vovô para conduzir nossos passos rumo ao meu lar. Logicamente, este privilégio era meu e a disputa era vencida pela frase:

             - Calma criançada...Se brigarem, vovô não vai contar aquela história do gigante da floresta...

             - Que gigante?

             - O gigante que lutou com o dragão?

              E enquanto caminhava, aquele velho sorridente e carinhoso ia apaziguando os ânimos, alterados pelo ciúme, na disputa de sempre! Mesmo exausto, atendia aos pedidos ansiosos:

               -Vovô! Conta uma história? Conta, antes de entrar!

               - Vovô! Conta aquela do "rio das águas mágicas!"...

               - Vovô! Conta a do "peixe que falava"!...

              E, assim, aquele velho que usava gravata em lugar de cinto, que nos fazia descobrir a alma das personagens, um dia me surpreendeu narrando uma história verídica, vivida num cenário de horror real e tendo como personagens ele, vovó e seus filhos e entre eles meu pai!

             Pela primeira vez fui apresentada a uma história de terror! Naquele dia, vovô me chamou e disse:

             - Vovô sempre conta "História de Mentirinha", mas eu queria contar pra você uma "História de Verdade"... Quer ouvir?

           - Quero sim, eu quero...

           Não era comum aquela súbita expressão de tristeza.

           - Vovô, que história é essa?

           - É uma história que aconteceu quando seu pai era quase um neném e seus tios eram crianças... Houve, há muitos anos atrás, uma doença que perversa, percorreu o mundo dizimando multidões. Foi a "Gripe Espanhola"!

           Eu ainda estava sorridente e curiosa, quando vi aquela lágrima correr no seu velho rosto, agora, amargamente decifrado.

          Queria pedir pra ele não continuar, mas a curiosidade não permitiu e me ouvi dizer:

          - Que história foi essa?

           - A Gripe Espanhola foi como uma "peste" e como toda peste... perversa! Era uma febre alta que matava sem piedade! Perdi muita gente querida! As pessoas morriam sem atendimento!

            - Aí, o Serviço de Saúde Pública anunciou que passaria pelas ruas, uma grande carroça "montada" para locomoção dos enfermos até o hospital! Nós morávamos em Vila Isabel, mas não confiei nas boas intenções públicas - sua avó estava contaminada!

            - Apavorado, eu escondi sua avó no"forro" da nossa casa e pedi às crianças que não contassem pra ninguém "nosso segredo", porque senão levariam a mamãe deles embora e eu queria tratar da saúde da vovó em casa, escondido!

             Agora, seus olhos deixaram escorrer a lágrima. Uma lágrima, dolorosamente furtiva e ele continuou:

             - Cuidei dela, secretamente...Naquele lugar escuro e sombrio...          E ela sobreviveu!

             -  Soube que muitas das carroças condutoras de pacientes, já deixavam os doentes no cemitério, aguardando o sinal definitivo de partida!

             Vovô, agora sorridente, falava comovido:

             - Ela sobreviveu e está aí toda bela!

             Demos um grande abraço! Um perene e afetuoso abraço... 

             Um abraço digno de um Vencedor!

             Assim, conheci "a peste" - a primeira "pandemia"- de que ouvi falar!

            Minha avó faleceu bem idosa e, muitos anos, depois do meu herói!.

                       Zelia da Costa/ Nova Mutum /MT/18:51

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