Ela
chegou tímida. Trazia pela mão uma criança assustada a olhar tudo com seus
grandes olhos curiosos.
- Eu
queria falar com a Diretora da Escola.
- Pois,
não. Sou eu mesma.
- Queria
matricular minha filha...
- Aguarde,
por favor. A Secretária já vem atender.
- Não! É
que eu preciso conversar com a senhora antes!
- Ah!... Ela
pode lhe dar todas as informações.
- Minha
filha é deficiente auditiva!
Antes que
eu dissesse alguma coisa, a bela jovem mãe foi “disparando”:
- Eu sei
que a sua Escola não atende crianças com deficiência auditiva, mas não há aqui
na região nenhum outro lugar que se disponha a fazer esse tipo de trabalho.
- Eu não
posso fazer o que a senhora está me pedindo. Não sou, nem tenho Professor
especialista nesta área.
- Eu fui
até a APAE, mas eles disseram que não podiam.
- Eu
também não posso! E não devo!
- Eu não sou desta cidade! Se a senhora deixar
que ela frequente... Eu a trarei todo dia!
- Aqui existe Pré-Escola Municipal! Vá até
lá... Converse com elas!
- Já fui! Elas rejeitaram minha filha!
- Veja bem! Eu não estou rejeitando a
criança!
Neste momento, chegou Patrícia.
Patrícia era minha aluna. Andava com auxílio
de uma prótese, pois, fora vítima da
“Paralisia Infantil” que lhe deixou sequelas graves. Ela veio e me deu um
“abração”, seguindo e se movendo, vagarosamente, para o interior da escola.
- Esta criança tem três anos, eu sei,
disse-me a mãe aflita! Foi a mãe dela
quem me encorajou vir até aqui. A Escola Municipal também recusou a matrícula
desta menina.
- Eu sei. Patrícia é muito novinha, mas a mãe
dela me implorou que a matriculasse
porque a menina estava ficando muito solitária e deprimida! Todo dia ela chega feliz
como quem vem a uma festa! Não me arrependo!
- A senhora não vai se arrepender se ficar
com minha filha!
- Presta atenção! É uma situação diferente!
Há no caso uma exigência que foge do nosso alcance. É preocupante!
- Aqui na região não existe fonoaudiólogo! O especialista que nos atendeu disse que ela
precisa conviver com outras crianças logo. Isso ajudaria muito na sua evolução.
- Tenho medo de prejudicar sua filha! Nós não
estamos preparados para este atendimento específico.
A mãe começou a chorar! Era um choro
angustiado.
Eu
fiquei comovida.
- Tudo bem! Vamos fazer uma experiência!
Reza para dar certo!
Assim, recebi Marta!
Se você costuma ler este blog, sabe que o
primeiro aluno surdo-mudo que eu tive sob meus cuidados foi Luís e a narração
desta aventura se intitula “Quem Canta”. Luís tinha quatorze anos. Quase um
rapaz!
Marta tinha quase quatro anos! Parecia ter muito
menos! Voltou no dia seguinte já de uniforme. Irrequieta, pegava os brinquedos
sem se deter em nenhum. Chegou com um aparelho em cada ouvido e a recomendação
de sua mãe:
- O “médico de São Paulo” disse que ela tem audição
mínima em um dos ouvidos. No outro, a percentagem é quase nula. Precisa usar os
aparelhos sempre. Só que ela tira e, aí, perde tudo. Será que se a senhora
pedir... ela fica com eles?
Assim que a mãe se afastou, Marta retirou os
aparelhos!
Com o aparelho dela nas mãos, perguntei às
crianças quem queria ficar com eles. Foi um “deus nos acuda” todo mundo queria
experimentar a novidade!
Ao ver o tumulto causado e os braços
estendidos pedindo, Marta se desesperou. Tomou-os das minhas mãos e os colocou
de volta nos ouvidos. Nunca mais tive problemas com isso.
Não foi, certamente, uma forma pedagógica,
mas no caso “os fins justificavam os meios”.
Marta
foi, aos poucos, se acomodando com o ambiente e as outras crianças com ela.
No
início, todos faziam perguntas a respeito. A curiosidade era grande. Não
entendiam como pode uma pessoa não ouvir os sons da vida. Fizemos algumas
experiências, algumas dramatizações e a solidariedade despontou com nobreza e
generosidade.
E eles eram tão pequenos...
Saíamos
muito a pé pela cidade. Visitávamos mercados, emissoras de rádio, feiras, o
Quartel do Corpo de Bombeiros, etc. Todos sabiam – Marta não ouve buzinas, nem
ruídos de alerta quaisquer – era preciso, portanto, estar atentos para evitar
riscos.
- Vamos
atravessar!
Mesmo com as professoras e auxiliares
cuidando de todos, um aviso infantil era sempre ouvido:
- Cuidado
com a Marta!
Durante
um tempo aceitei suas condições. Qualquer solicitação sua era expressa por
mímicas, decifradas com ansiedade por todos. Um dia, dada a minha absoluta
falta de competência, resolvi que seus gestos não bastavam. Ela teria que
emitir um som. Qualquer som!
Dona
Maria José era a responsável pelo
refeitório.
- De hoje
em diante, dona Maria, se Marta não emitir um som, qualquer que seja, um
grunhido, um berro, qualquer som. Você não atenderá.
- Isto é
maldade, Professora!
- Nem
água, dona Maria, você dará, se ela não expressar um som qualquer!
Não
comentei minha atitude com sua mãe! Não era uma decisão simpática.
Marta, a princípio, ficou bastante irritada
porque esta ordem também foi comunicada às crianças.
- Se ela
quiser um brinquedo, um lápis, qualquer coisa, só atendam se ela emitir qualquer som.
Qualquer som, acompanhado ou não de gestos, será atendido. Só gestos, não!
A irritação de Marta cedeu pouco a pouco.
Logo se adaptou e sorria, quando articulando alguns sons via que as crianças
traduziam e vibravam como num jogo de acerto:
- Ela
está ”dizendo” que quer mais biscoitos!
Eles explicavam já, com certa irritação,
quando alguém parecia ter dificuldade de compreensão!
Agora, ela ensaiava cantar as músicas dos
“brinquedos cantados”, as canções de “Páscoa” e do “Dia dos Índios”. Comovida,
eu ouvia aqueles sons embolados e me lembrava de Luís, o meu menino pobre, a
minha primeira experiência feliz com um deficiente auditivo.
Você acredita em “milagres”? Eu acredito e
não estou só! Einstein disse:
-“Quando
nada se percebe... Está acontecendo um milagre!”
Um dia
lindo de Sol. Céu azul. De repente, surge uma nuvem. Chove!
Sempre,
desde criança, fui encantada com este cenário de Sol e Chuva, concomitantes.
A gente até cantava:
- “Sol e
Chuva – casamento de Viúva!”
Repetia até a exaustão este mote. Até enrouquecer
ou até que a chuva parasse. Ficávamos ”ensopados”. Sabíamos que nossas mães se
aborreceriam, mas era irresistível.
Não sei... Talvez esta memória ou, quem
sabe, movida por um desejo incontido e inexplicável de compartilhar tal magia,
impelida pela força de um milagre, saí em busca de Marta! Tomei-a no colo e
corri para o quintal.
Eu, com
ela no colo, gritava e rodopiava numa euforia desenfreada! Fazia calor, a chuva
caía e escorria por nossos rostos, cabelos...
Estendi um braço e apontando para o céu
gritei:
- Chuva
Marta! Sol e Chuva! Chuva! Chuva!Chuva!
Eu rodopiava com ela que rindo, de bracinhos
abertos, jogava a cabeça para trás em êxtase!
- Chiu...chiu...fa...!
Chiu...fa! Chiu...fa!
E ria , e ria e ria!
Eu ria e chorava e apontava o Sol e bebia a
chuva e ela imitava!
- Chuva!
Querida! Chuva!
-
Chu...fa...! Chu...fa! Chufa!
Sempre no meu colo voltamos rindo! Dona Maria
correu com as toalhas. Enxuguei e
troquei a roupinha encharcada desta nova Marta, de olhos brilhantes e sorriso
inesquecível, que queria contar pra todo mundo sua experiência formidável.
Não foi Mamãe. Nem Papai, nem Vovó... a
primeira palavra que Marta balbuciou. Foi CHUVA!!
Contei pra sua mãe que ela falou - chuva!
Mesmo que eu não contasse ela saberia porque Marta não dizia outra coisa. O que, só agora,
estou descrevendo é como se deu o milagre!
Depois
deste dia, Marta ficou “exibida” porque vivia ensaiando novas palavras e “cantava”
com mais desenvoltura.
Sei
que hoje ela fala, normalmente. É Pedagoga! Excelente Professora!
Encontrei
sua mãe, certa vez. Enternecida me contou
estas
notícias e apontou para o carro. De lá, saiu uma moça alta e muito bonita!
- É
Marta! Marta sabe quem é essa?
A jovem veio a meu encontro. Beijou-me, deu-me
um longo abraço!
Comovidas, num soluço, ficamos em silêncio!
Um silêncio que gritava! Era tão forte seu
som... que nos despedimos sem dizer palavras!
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