VEM COMIGO!
Existem experiências na
vida que fogem a qualquer prognóstico
que se possa fazer da realidade. São, em verdade, as fantásticas possibilidades
de você perceber quando o inacreditável se avizinha. Não é preciso “viver” guerras
alheias para ser parte de um cenário de dolorosa crueza.
Digo-lhe isto, agora,
porque fui arremetida a um momento, não tão longínquo, mas de certa forma
distante, na velocidade que só a memória é capaz de imprimir.
Tudo porque acabei de
ver na televisão um trem superlotado
como nos velhos tempos!
Durante alguns anos
viajei nos trens da Central do Brasil! Era a única forma útil, em todos os
sentidos, capaz de nos fazer chegar à Escola Franklin Távora localizada em
Santa Cruz!
Não sei hoje como está
a Central do Brasil do Rio de Janeiro. Naquela época, o majestoso edifício
abrigava um pátio como se fora grande palácio. Era um imenso vão interno cujo
teto, para ser visto, nos obrigava a pender a cabeça para atrás!
Havia uma série de
guichês inúteis distribuídos em linha. Em funcionamento era sempre só um. Ele atendia passageiros dos “trens paradores” que como o nome diz, eram composições que paravam
em todas as estações do longo percurso e, também, aqueles usuários que iam direto ao fim da “linha”,
no caso Santa Cruz e cuja única pausa era feita na estação intermediária, Engenho de Dentro. Era o chamado “trem direto”!
Não preciso descrever o
tumulto e o desespero na fila para a compra das passagens e o humor do pobre
funcionário enlouquecido no desafio de atender com rapidez e eficiência a urgência que se impunha.
Nosso trem partia às 6:05 horas. Era um tempo em que carro não era uma condução popular como agora.
Pois bem, estamos na
estação aguardando o trem! Sempre um momento de grande apreensão porque as
pessoas se aglomeravam na plataforma, ansiosas por “ter a sorte” de encontrar uma porta quebrada que lhes permitissem entrar
e sentar logo, sem precisar acotovelar para conseguir um lugar num
desconfortável banco de vagão.
- Arre! Sentei!
Muito bem! Vou chegar
um pouquinho para o lado, assim, você ganha uma “beirinha”. Se você tivesse
fechado os olhos e empurrado quem estava na sua frente... já estaria bem, como
eu! Deixa pra lá! Leva um tempo, mas você aprende! É um gradativo processo de
embrutecimento coletivo!
O “maquinista” faz soar um apito forte e dá uma sacudida na “composição”.
É um “tranco de arrumação”. O trem
está “lotado”. Fechadas as portas... Podemos partir!
Invariavelmente, um
bêbado se faz presente.
Ele desfila fétido e
infeliz, com suas mãos imundas e unhas negras. Estende-as, ameaçadoramente, à
espera de algum dinheiro. Não sendo atendido, dispara a saraivada de
imprecações e segue escarrando uma grossa secreção no piso. Agora, outro
mendigo arrasta as pernas inúteis pelo chão, deixando em seu rastro um desenho
nojento, legado do grosso escarro, ainda úmido. A eles, segue o cego conduzido por uma criança. Ele sacode uma lata com moedas que tilintam. Para e suplica em versos candentes a piedade de todos. É a procissão dos desvalidos! Um horror cotidiano! Esta
sensação angustiante é logo superada
pela entonação, desafinada e estridente do homem que, cantando, apregoa a revista de “modinhas” com as letras das músicas populares que
deverão seduzir os passageiros. Entretanto, a voz do baleiro o supera e ele,
aborrecido, passa a outro vagão... Não, sem antes, lançar um olhar de desdém ao
menino que grita suas balas carameladas de coco. Rindo, o jovem debochado oferece seu doce produto
ao jornaleiro que alardeia mais um crime cometido e divulgado pelo jornal “A Luta” especializado em fazer da desgraça, a razão maior de sua
sobrevivência – “um jornal que se torcer sai sangue” - era a piada irônica, ouvida a seu respeito na época. “O Dia” era o jornal rival e também
dedicado as mesmas insanas manchetes. Ambos exibiam nas capas fotos chocantes das
vítimas de crimes ou acidentes que eram quase “esfregadas” nas caras (rostos?) dos passageiros. O “Diário de Notícias”, “Última Hora”, o róseo “Jornal dos
Esportes”, “O Globo”, "Correio da Manhã" e o “Jornal do Brasil” também encontravam
leitores ávidos. Um “beato” seguia o
jornaleiro para exaltar as más ações e ameaçar, com os horrores do inferno os
passageiros, como se fossem eles, os autores das sandices divulgadas.
Ufa! Chegamos à estação
do Engenho de Dentro!
O maquinista faz, neste local, uma pausa
obrigatória para esperar que seja
liberada a única linha que daqui para frente será usada. Aguardemos, então, o
trem que vem para que possamos entrar no desvio.
Aqui “descem” muitos
passageiros, mas “sobem” o dobro! Pena que a lavadeira que despejou sua trouxa
de roupas sujas no meu colo, sem a minha aquiescência, more mais distante. Pelo
visto, terei que carregar este peso por um bom tempo.
Estou com o pescoço
cansado porque tenho que manter a cabeça para a direita. Ficando de frente roço
meu rosto na barriga da lavadeira que tenta escapar do assédio de um homem. À minha
esquerda está postado aquele galã que sempre aparece. É como uma “entidade”: traz um sorriso que acredita irresistível,
cerra os olhos e espreme os lábios para registro do seu poder de sedução! É
hilário!
Caí na bobagem, um dia, de rir dele e
ele não entendeu! Pensou que estava agradando! Ficou difícil!
Não tem jeito! Gordo ou magro, moço ou velho, mas
sempre ridículos, eles, os imbecis e suas anomalias se infiltram entre os seres normais e surgem, como se
brotassem... Tal ervas daninhas.
A viagem prossegue!
Embalado pelo ruído ritmado, o cansaço começa a vencer as resistências e muitos
cochilam.
Súbito, um barulho do
ranger das rodas de aço nos trilhos e um solavanco brutal! O trem freou!
Acidente? Descarrilou?
Pânico geral!
Será outro comboio na
mesma linha?
Medo!
Fora, um homem em choque vem a passos lentos
carregando duas pernas debaixo dos braços, ambas amputadas pelo “trem parador” que passara por nós, na outra linha, minutos
antes. Um rapaz, “pingente”, havia
caído e agora, ainda vivo e lúcido, banhado em sangue, tem o tronco carregado num “carrinho de mão”. Visão grotesca!
Ele implora pela mãe!
O maquinista avisa alguém que vamos ficar
estacionados ali por um tempo. A notícia logo se espalha!
São 7:10!
Nossas crianças nos
aguardam às 7:30. Caminham em média quatro quilômetros para assistir nossas
aulas. Somos quatro amigas. Estudamos nas mesmas escolas. oramos na Zona Sul e somos professoras na mesma escola da Zona Rural, a Franklin Távora em Santa Cruz. Não sabemos mais a que
horas chegaremos!
- Se você não quiser esperar... pode “descer” aqui!