Não é
possível dissociar o sorriso largo, da figura que diante de mim, com olhos marejados e ansiosos, expunha a ansiedade, a curiosidade e hoje sei, a esperança.
- Bom dia!
- Bom dia! Fia!
Durante cerca de oito anos esta cena se repetiu!
Dona Maria era a servente daquela escola. Funcionária
pública. Analfabeta. Sua função era limpar as dependências internas e
externas e preparar o leite em pó que era servido às
crianças.
A construção de escolas rurais fez
surgir ali, nos Palmares, a Escola Franklin Távora, com quatro salas para
atender aos filhos dos trabalhadores das fazendas que existiam em Santa Cruz,
no Rio de Janeiro.
Talvez, o isolamento tenha contribuído para
dar à dona Maria a oportunidade de trabalho. O fato estranho é que ela precisou
de documentos para ingressar no funcionalismo público e me contou, sorridente,
que escolheu um dia, um mês e um ano para ter nascido e foi providenciar sua
Certidão de Nascimento.
Com o documento em mãos, se apresentou para
ocupar a vaga e, não havendo outros interessados, ela foi admitida.
Baixinha, “troncuda”, vestida com um uniforme
azul celeste, de padrão xadrez, um
avental muito branco, que ela mesma resolveu adotar e um lenço branquinho, bordado, que lhe
prendia os ralos cabelos trançados...Ela se assemelhava a um duende em sua
misteriosa origem.
D. Maria tinha dois filhos: um negro retinto,
alto, magro, muito forte - o Juju; outro, um mulato claro, alto,
fortíssimo, magro, físico de atleta - o
Wilson! Todos dois com mais de um metro e oitenta e, apesar da aparência, Juju
tinha dezoito anos e seu irmão quinze. Pareciam homens bem mais velhos, o que estranhei!
Aliás, aquele era um mundo pronto a me surpreender!
As salas de aula, muito espaçosas e claras,
evidenciavam o baixo índice de crianças matriculadas. Eram todas franzinas.
Peles amarelecidas, mãos e pés
embrutecidos, unhas encardidas, cabelos em "grumos". Exalavam um odor
desagradável e inesquecível e muitas exibiam no rosto pálido, feridas causadas
pela secreção verde e grossa a escorrer do nariz.
Roupas em frangalhos. Poucas usavam chinelos
nos dois pés!
É
claro que eu conhecia a miséria brasileira! Livros e filmes já me haviam inserido
neste contexto até agora fascinante, porém, nenhum escritor ou cineasta foi capaz
de imprimir ao texto a dramática desolação!
O
espectro era maior porque não se exibia no sertão nordestino, não!
O horror era vizinho!
Não eram olhos infantis, risonhos ou moleques
que encaravam quase me pedindo desculpas pela ousadia! Eram olhos opacos, descoloridos,
rasos!
O
perfume da mata nas cercanias tentava suavizar a dureza do momento, mas calcou
na minha memória a marca antagônica que pode ser contida no contraste, o que me
valeu até hoje como sinalização
de alerta, impedindo que falsas aparências ou pequenos detalhes sejam capazes
de mascarar, suavizar e me confundir quanto à crua realidade.
Embora a
Natureza emprestasse seu aroma de magia,
não havia condições para exibir seu
encantamento. Ali estava o registro da miséria, do descaso, da desfaçatez.
O curso de formação de profissionais do
magistério, “ Curso Normal”, altamente conceituado, cujas vagas eram disputadas
nas provas “duríssimas” - escrita e oral -
mantido pelo governo, congregando em seu corpo docente profissionais de
alta competência, dedicados e determinados a fazer cumprir o “Programa” cujo
conteúdo era ora irrelevante, diante da verdade amarga, exposta agora, a minha tornada
"incompetência".
Algo porém, foi capaz de vencer meu torpor:
- aquele sorriso - escancarado,
confiante!
Era como
se dona Maria estivesse me esperando com a certeza de que eu, como um “messias”, finalmente
chegara. Esta perspectiva de esperança, assustadora e comovente, comprometeu o meu
destino.
Ela usava chinelos “de dedos” e pisava para
dentro como um papagaio. Seus passos
miúdos imprimiam ao andar o movimento pendular cadenciado, ora ligeiro, ora
sereno, dependendo das suas aflições.
O prédio tinha sido construído na forma de “colchete”.
Em uma “perna” ficava a cozinha e atrás dela, no sentido de sua extensão, na
parede contígua, as dependências da casa do zelador, ora desocupada. Na “perna”
oposta havia a Sala dos Professores, a Sala da Direção, um banheiro, uma sala
destinada ao almoxarifado e uma outra sala, fechada à chave, cuja guarda era
mantida "aos cuidados" da Diretora.
Um pátio de chão de cimento vermelho, muito limpo,
ocupava o espaço entre esses ambientes.
Um terço dele, próximo à cozinha, era cercado por parede vazada a uns dois
metros do chão, permitindo ampla ventilação. Mesinhas quadradas, dispostas em linha,
sinalizavam o Refeitório.
O Banheiro das crianças cheirava mal.
Quatro privadas e um box com chuveiro. Lavado e bem e todo dia. Eu via. Cheirava
muito mal!
As Salas de Aula eram dispostas duas de
cada lado, separadas por um largo corredor que dava entrada à escola, desembocando no pátio
interno.
Entre a escola e o muro em ruínas, um
espaço de terra que perdera a memória de um jardim. De resto, nem cerca, nem
muro, mas escrito num azul desbotado com letras maiúsculas, a certeza de que a
Escola Franklin Távora era lá!
Radiante, dona Maria serviu um cafezinho.
-
Fresquinho, fia, pode tomá!
Tomei, num esforço para não desagradá-la!
- Muito
bom, obrigada!
- Qué mais?
Toma mais...
- Não! Não...é que estou com o estômago meio
ruim...
- A fia tá
cum dô di estrombo? Intão vo fazê um chá!
E
foi assim que conheci a maior especialidade de dona Maria - o domínio
das Propriedades das Plantas!
Qualquer dor ou machucado era curado com seus
chás, unguentos ou mesinhas! Era uma
bruxa! Em outras eras, noutro lugar seria queimada viva!
- Fia! A merma
pranta qui cura...mata!
Nem todas as foia da merma pranta tem o mermo efeito!
Chá é remédio...demais é veneno!Nem todo chão dá ervra boa!
Nem ela, nem seus filhos, algum dia, "foram ao
médico!"
- Ficava longe, fia! Eu tinha vregonha! E num
tinha dinhero!Dispôs era coisa miúda! Fácinho de resolvê!
Não havia cólica menstrual que resistisse aos chás
de dona Maria, nem dor de cabeça, nem dor
de estômago...
Era
só ela ouvir uma queixa... Se embrenhava pela mata e voltava com suas raízes,
folhas ou sementes. Aí, começava seus processos de lava, ferve, esmaga... E lá
vinha a pomadinha para o machucado, a folha amassada para aliviar a dor, o chá
na compressa ou na “xicrinha” ... E, rápido como um passe de mágica, os
sorrisos voltavam. Aquilo se tornou tão natural que, não raro, até se esquecia de agradecer a
generosidade e a ciência daquela estranha criatura!
Por onde começar? Eu me perguntava, rolando
em minha cama, insone.
Zelia da Costa
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